quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

O OLHO DO DRAGÃO

“— Você poderá dizer que meu trabalho é belíssimo ou que estou perdendo meu tempo—disse, dando outro ponto —, mas isto não afetaria minha serenidade interior. Esta atitude é chamada de “conhecimento do próprio valor”. — Fez uma pergunta retórica que ela mesma respondeu: — E para você, qual é o meu valor? Absolutamente zero.

Disse-lhe que, na minha opinião, ela era magnífica, na verdade uma pessoa verdadeiramente inspiradora. Como ela podia dizer que não tinha valor?

— É muito simples — explicou Clara. — Enquanto as forças positivas e negativas se encontram em equilíbrio, elas anulam-se reciprocamente, o que significa que meu valor é zero. Significa também que não posso perturbar-me quando alguém me critica, nem tampouco ficar satisfeita quando alguém me elogia. — Clara levantou a agulha e, apesar da pouca luminosidade, enfiou nela o fio, com rapidez.—Os sábios chineses da antiguidade costumavam dizer que, para conhecer o seu valor, você tem de deslizar através do olho do dragão — explicou, unindo as duas pontas da linha.
Continuou dizendo que esses sábios estavam convencidos de que o desconhecido ilimitado era protegido por um enorme dragão, cuja pele irradiava um brilho ofuscante. Acreditavam eles que os buscadores destemidos que ousam aproximar-se do dragão ficam estupefatos ante sua luminosidade ofuscante, a força de sua cauda, a qual, com a mais leve vibração, esmaga tudo que estiver em seu caminho e, ante seu hálito ardente, que transforma em cinzas tudo que estiver a seu alcance. Mas eles também acreditavam existir uma maneira de passar por esse dragão inacessível. Eles tinham certeza de que, fundindo-se com a intenção do dragão, era possível tornar-se invisível e atravessar o olho do dragão.
— O que significa isto, Clara? — indaguei
— Significa que, por meio da recapitulação, podemos nos esvaziar de pensamentos e desejos, os quais, para aqueles videntes ancestrais, significavam tornar-se um com a intenção do dragão, por conseguinte, invisível.

(…)

— A arte do vazio era a técnica praticada pelos sábios chineses que desejavam atravessar o olho do dragão — explicou, sentando-se novamente. — Hoje, chamamos esta técnica de arte da liberdade. Consideramos esta expressão melhor, pois esta arte realmente conduz a uma esfera abstrata, onde a humanidade não é importante.

— Você quer dizer que é uma esfera inumana, Clara? Clara pousou o bordado no colo e fitou-me.

— O que quero dizer é que praticamente tudo que ouvimos falar a respeito dessa esfera, de sábios e videntes que a buscaram, apresenta laivos das inquietações humanas. Mas nós, que praticamos a arte da liberdade, descobrimos com a experiência direta que este retrato é incorreto. Em nossa experiência, tudo que é humano nessa esfera é tão destituído de importância que se perde na amplidão.

— Espere um instante, Clara. E o grupo de personagens lendários chamados de chineses imortais? Eles não alcançaram a liberdade da maneira que você está falando?

— Não da maneira que estamos falando—disse Clara.—Para nós, liberdade é libertar-se da humanidade. Os chineses imortais ficaram aprisionados em seus mitos da imortalidade, da sabedoria, da liberação, do retorno à terra para conduzir outras pessoas ao longo do caminho. Eles eram estudiosos, músicos, possuidores de poderes naturais. Eram justos e excêntricos, assim como os deuses gregos clássicos. Até mesmo o nirvana é um estado humano, no qual o êxtase é a libertação da carne.

Clara havia conseguido deixar-me completamente desorientada. Disse-lhe que, durante toda minha vida, eu fora acusada de falta de calor humano e compreensão. Na verdade, haviam-me dito que eu era a criatura mais fria que alguém poderia conhecer. Agora Clara estava dizendo que liberdade é livrar-se da compaixão humana. E eu sempre pensara que me faltava alguma coisa fundamental, por não possuir essa compaixão. Eu estava prestes a me entregar outra vez à autopiedade, mas Clara veio de novo em meu auxílio.

— Libertar-se da humanidade não significa algo tão idiota como não possuir calor humano ou compaixão — disse.

— Mesmo assim, a liberdade como você a descreve é inconcebível para mim, Clara — insisti. — Não sei se eu ia querer uma parte dela.

— Tenho certeza de que quero cada parte dela — ela redargüiu.
Embora minha mente tampouco possa concebê-la, acredite, ela existe! E acredite também que um dia você estará dizendo a alguém tudo que estou lhe falando agora. Talvez você utilize até as mesmas palavras. — Ela me deu uma piscadela como se tivesse certeza de que isto ia acontecer. — À medida que você der continuidade à recapitulação, a entrada na esfera onde a humanidade não é importante lhe irá aparecer. Este será o convite para você atravessar o olho do dragão. É o que chamamos de vôo abstrato. Na verdade ele implica a travessia de enorme abismo para chegar a uma esfera que não pode ser descrita porque o homem não é a sua medida.

Fiquei paralisada de medo. Não ousava levar Clara na brincadeira, pois ela sempre falava sério. A idéia de perder minha humanidade, tal como ela era, e saltar num abismo era mais do que assustadora. Eu estava prestes a perguntar se ela sabia quando a entrada iria aparecer-me, mas ela continuou com sua explicação:

— A verdade é que a entrada está diante de nós o tempo todo — disse Clara—, mas apenas aqueles cujas mentes são silenciosas e cujos corações estão em paz podem ver ou sentir sua presença.

Explicou que a palavra entrada não era metafórica, pois real mente se afigurava vez por outra como uma porta lisa, uma caverna negra, uma luz estonteante ou qualquer coisa concebível, até mesmo o olho de um dragão. Explicou que, neste sentido, as metáforas dos sábios da China ancestral não eram tão despropositadas.

— Outra coisa que os antigos buscadores chineses acreditavam era que a invisibilidade é o corolário da obtenção de uma tranqüila indiferença — prosseguiu ela. — O que é uma tranqüila indiferença, Clara? Em vez de responder diretamente minha pergunta, ela perguntou se eu já vira os olhos de galos brigando.

— Nunca vi uma briga de galos na minha vida—respondi.

Clara explicou que a expressão dos olhos de um galo de briga não é encontrada nos olhos de pessoas ou animais comuns, pois estes refletem calor, compaixão, raiva, medo.

— Os olhos de um galo de briga não possuem nada disso — informou-me Clara.—Ao contrário, eles refletem uma indiferença indescritível, também encontrada nos olhos de seres que fizeram a grande travessia. Pois, em vez de olhar para fora, para o mundo, eles se voltam para dentro, para contemplar aquilo que ainda não está presente. O olho que contempla o interior é imóvel. Ele reflete não as inquietações e temores humanos, mas a amplidão. Aqueles que viram o ilimitado atestaram que o ilimitado retribui o olhar com uma fria e inflexível indiferença.”

(A Travessia das Feiticeiras, Taisha Abelar)

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