terça-feira, 4 de dezembro de 2018

NADA MAIS ATIVO QUE UMA FUGA!




O que é uma linha de fuga? Consideração a partir do conto “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa

A proposta do texto é analisar o conto "A terceira margem do rio", de João Guimarães Rosa, publicado em 1962 no livro Primeiras estórias. Problematizamos o conto a partir de uma conversação com a filosofia de Gilles Deleuze, em especial o conceito de linhas de fuga. Para Deleuze, ‘fugir’ é um ato que nos conduz a um novo modo de vida. Enquanto ato de coragem, ‘fugir’ possui o sentido de romper com o que é estabelecido. Dessa maneira, podemos pensar o ato do pai que abandona absolutamente tudo e se implica com o rio como a desterritorialização maior e mais radical. Uma sorte de delírio que faz com que um homem simples traia seu próprio tempo e história; desvia seu rosto dos antigos códigos, abandonando aquilo que o "prendia à terra", para experimentar um outro devir.
Palavras-chave: Rosa – Deleuze – fuga
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Com a liquefação das referências fixas e das oposições exterioridade-interioridade, dos pontos de vista múltiplos e às vezes incertos (Pirandello), dos espaços sem limites ou centro, a obra moderna literária ou plástica é aberta. O romance não tem mais começo nem fim verdadeiros, o personagem é “inacabado” a exemplo de um interior de Matisse ou de um rosto de Modigliani. A obra inacabada é a manifestação mesma do processo desestabilizador da personalização, que substitui a organização hierarquizada, contínua, discursiva das obras clássicas; trata-se de construções discordantes em escala variável, indeterminadas por sua ausência de ponto de referência absoluto, estranhas às imposições da cronologia.7
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A fuga sempre nos leva para esse espaço intermediário, que tem como marcas sua instabilidade e movimento, contrastando com o mundo estável e estático das margens. O
próprio Guimarães Rosa, em seu romance Grande sertão: veredas, fez alusão à instabilidade constante dos rios, que sempre confunde aqueles que decidem fazer travessia através deles: Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?15
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Mas o que é, afinal, o ato de fugir? Qual o alcance total de suas consequências?
Segundo Deleuze:
Partir, se evadir, é traçar uma linha. […] A linha de fuga é uma desterritorialização. Os franceses não sabem bem o que é isso. É claro que eles fogem como todo mundo, mas eles pensam que fugir é sair do mundo, místico ou arte, ou então alguma coisa covarde, porque se escapa dos engajamentos e das responsabilidades. Fugir não é renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. É o contrário do imaginário. É também fazer fugir, não necessariamente os outros, mas fazer alguma coisa fugir, fazer um sistema vazar como se fura um cano. […] Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia. Só se descobre mundos através de uma longa fuga quebrada.16
Fugir é, portanto, uma ação criadora e criativa. É a única maneira de se “descobrir” mundos, segundo Deleuze. Isso porque a fuga permite vazar um sistema, romper paradigmas, olhar o mundo pelo lado de “fora”. Só a fuga faz isso. Além disso, é um ato de coragem e ousadia, e não uma atitude covarde e omissa, como se poderia a princípio pensar. Fugir é romper com o que está estabelecido. É também assumir uma postura – “nada mais ativo que uma fuga”.
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Ao fugir, abrimos mão do conforto da terra seca, embarcamos, assim como o Pai do conto de Rosa, em uma nova vida, certamente mais perigosa, definitivamente mais interessante. Afinal, fugir é contestar a ordem pré estabelecida, e essa contestação é um ato de desafio:
Uma fuga é uma espécie de delírio. Delirar é exatamente sair dos eixos (como “pirar” etc). Há algo de demoníaco, ou de demônico, em uma linha de fuga. Os demônios distinguem-se dos deuses, porque os deuses têm atributos, propriedades e funções fixas, territórios e códigos: eles têm a ver com os eixos, com os limites e com cadastros.
É próprio do demônio saltar os intervalos, e de um intervalo a outro. […] Sempre há traição em uma linha de fuga. Não trapacear à maneira de um homem da ordem que prepara seu futuro, mas trair à maneira de um homem simples, que já não tem passado nem futuro. Traem-se as potências fixas que querem nos reter, as potências estabelecidas da terra. O movimento da traição foi definido pelo duplo desvio: o homem desvia seu rosto de Deus, que não deixa de desviar seu rosto do homem. É nesse duplo desvio, nessa distância dos rostos, que se traça uma linha de fuga, ou seja, a desterritorialização do homem.18
Fugir é um ato libertário, segundo Deleuze, simplesmente porque não fugir equivale a continuar submetido às potências fixas estabelecidas na terra, as mesmas que querem “nos reter”. Para aqueles que não fogem, que permanecem na margem, o ato de fugir magoa, já que é normalmente interpretado como uma traição. É, de fato, um tipo de traição, mas a vítima não são as pessoas que ficam, mas o próprio sistema opressor: “traem-se as potências fixas”
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