sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

ENTREVISTA COM CAROL TIGGS, FLORINDA DONNER E TAISHA ABELAR NA REVISTA MAS ALLÁ (1977)



“Pergunta: Junto com Carlos Castaneda, vocês foram aprendizes de Dom Juan Matus. No entanto, ninguém soube de sua existência por  três décadas. Por que este longo silêncio e qual foi o motivo que as levou a rompê-lo?
Resposta: Antes de mais nada, gostaríamos de deixar claro que cada uma  de nós conheceu a pessoa a quem Carlos Castaneda chamava de Nagual Juan Matus com três nomes diferentes: Melchor Yaoquizque, John Michael Abelar e Mariano Aureliano. Para evitar confusão, sempre o chamamos de velho Nagual, velho, não no sentido da velhice, mas sim em antiguidade e, sobretudo, para diferenciar do novo Nagual Carlos Castaneda.

Discutir nosso aprendizado com o velho Nagual não foi, em nenhum momento, parte da tarefa que ele concebeu para nós, de forma que permanecemos  no anonimato absoluto.

Porém, o retorno de uma de nós, Carol Tiggs em 1985, marcou uma mudança completa em nossas metas e aspirações. Carol Tiggs estava encarregada de nos guiar através de algo que, para o homem moderno, poderia traduzir-se como espaço e tempo, mas para os feiticeiros do México antigo significava consciência de ser. Eles conceberam uma viagem através do que eles chamavam o mar escuro da consciência.

Tradicionalmente, o papel de  Carol Tiggs era nos guiar nessa jornada. Mas com seu retorno, ela transformou automaticamente a meta insular de uma viagem privada em algo mais abrangente. Foi por esse motivo que decidimos sair do nosso anonimato e ensinar os passes mágicos dos xamãs do México antigo.

P: A instrução de vocês foi semelhante a  de Carlos Castaneda ou, caso contrário, quais são as diferenças desta instrução? Como você descreveria Don Juan e seus companheiros ou bruxos?

R: A instrução dada a cada uma de nós não era semelhante à de Carlos Castaneda, pelo simples fato de que somos mulheres e temos órgãos de suma importância que não existem no corpo de um homem: os ovários e o útero. Para nós a instrução do velho Nagual consistiu em pura ação. Quanto a descrever os companheiros do velho Nagual, tudo o que podemos dizer deles, neste momento de nossa vida é que eram seres excepcionais, e seria um ato banal de nossa parte dar-lhes uma aparência  das pessoas neste mundo.

O mínimo que podemos afirmar sobre eles, eram 16 incluindo o velho Nagual, é que mostravam um estado de vitalidade e juventude extraordinários. Todos eram velhos e, ao mesmo tempo, não eram velhos. Quando, por curiosidade e espanto, perguntamos ao velho Nagual qual era a razão para esta força excessiva, ele respondeu que era o contato com o Infinito que os  rejuvenescia  a cada passo.

P: Em seus livros podemos ler que há diferenças significativas entre homens e mulheres na forma como cada um acessa o conhecimento. Vocês poderiam esclarecer este ponto? Qual a diferença de vocês, como bruxas, de seu companheiro masculino Carlos Castaneda?

R: A diferença entre os bruxos e as bruxas na linhagem do velho Nagual é a coisa mais simples do mundo. Nós, as mulheres, como todas as mulheres do mundo, temos órgãos diferentes. O útero e ovários, segundo os feiticeiros, dão às mulheres uma facilidade para entrar em áreas exóticas da consciência do ser. A idéia dos feiticeiros é que há uma força colossal no universo, uma força que existe de uma forma consistente, perene, que flutua, porém, não muda. Chamam essa força de consciência do ser ou o mar escuro da consciência. Os feiticeiros afirmam que todos os seres vivos estão unidos a essa força, e o ponto de união é chamado ponto de encaixe. Os feiticeiros dizem que as mulheres, devido à presença da matriz dentro do corpo, tem a  facilidade de deslocar esse ponto de união e colocá-lo em um lugar diferente.

Gostaríamos de enfatizar que a ideia dos feiticeiros é que o ponto de encaixe de toda humanidade está localizado no mesmo lugar: atrás das omoplatas, a um metro de distância delas. Este ponto é percebido pelos feiticeiros quando os seres humanos são vistos como energia, isto é, como um conglomerado de campos de energia sob a forma de uma esfera luminosa.

Os feiticeiros dizem que os homens, por ter seus órgãos sexuais fora da cavidade corporal, não possuem essa facilidade e, portanto, seria absurdo tentar apagar ou ocultar esta diferença energética.

Sobre o comportamento dos bruxos e bruxas na ordem social, é quase o mesmo. As diferenças energéticas fazem com que os praticantes, homens e mulheres, se comportem de maneira diferente. No caso dos feiticeiros, estas diferenças são complementares. O que as bruxas fazem com grande facilidade serve de base para a ação dos bruxos, que é mais sustentada e com propósito mais coeso.

P: Lemos em seus livros que cada uma de vocês representa uma categoria diferente no xamanismo. Por exemplo, Florinda Donner-Grau é definida como “sonhadora”, Taisha Abelar como “espreitadora”. Estes termos são exóticos e atrativos, mas que cada um interpreta ao seu modo. Qual é o significado real desta classificação? Que significa para Florinda Donner-Grau ser uma “sonhadora” e para Taisha Abelar ser uma “espreitadora”?

R: Novamente, a diferença é muito simples e está determinada pela energia de cada um de nós.

Florinda Donner-Grau é uma “sonhadora” porque tem uma facilidade extraordinária para deslocar seu ponto de encaixe. A ideia dos feiticeiros é que, ao deslocar o ponto, mediante o qual cada um de nós, seres humanos, está unido a consciência universal,  muda também o conjunto de campos de energia que convergem no que os feiticeiros chamam de ponto de encaixe. Se este ponto se deslocar  para outro local dentro dos limites do conglomerado de energia que somos, um outro conjunto de campos de energia entra em jogo, similar ao conjunto habitual, mas diferente o suficiente para garantir a percepção de um outro mundo que não é o mundo cotidiano.

Por outro lado, o dom de Taisha Abelar como “espreitadora” consiste em sua facilidade para fazer com que o ponto de encaixe permaneça fixo na nova posição para a qual ele se moveu. Sem esta facilidade para fixar o ponto de encaixe, a percepção de um outro mundo é muito fugaz, assim como o efeito produzido por certas drogas alucinógenas: uma profusão de imagens sem pé nem cabeça. Certamente bruxas acreditam que o efeito destas drogas é deslocar o ponto de encaixe de uma maneira muito fugaz .

P: Em seus livros mais recentes, A Bruxa e a Arte de Sonhar e A Travessia das Feiticeiras, falam de  experiências pessoais que são difíceis de aceitar. Acesso a outros mundos, viagem  ao desconhecido, contato com seres inorgânicos … Todas são experiências que desafiam a razão e frente as quais se dão dois tipos de reações: não acreditar absolutamente em nada ou considerá-las como pessoas especiais, que não alcança a doença, a morte nem a velhice. Qual é o significado da realidade quotidiana para uma bruxa e como se encaixa o tempo mágico com o tempo cronológico?

R: Perdoe-me a franqueza, mas essa questão é muito abstrata e “de arrancar os cabelos”. Nós não somos seres intelectuais e não estamos de modo algum qualificadas para nos entregarmos a exercícios em que o intelecto se move usando palavras que na realidade não tem nenhum significado. Nenhuma de nós, sob hipótese alguma, está além do bem e do mal, da doença ou da velhice.

O que aconteceu é que fomos convencidas pelo velho Nagual de que existem duas categorias de seres humanos. A grande maioria de nós são seres que os feiticeiros chamam, de um modo pejorativo, “os imortais”. A outra é a categoria de seres que vão morrer.

O velho Nagual nos disse que os seres humanos, quando acreditam ser imortal, nunca tomam a morte como um ponto de referência e se permitem o luxo inconcebível de passar uma vida inteira envolvido em palavras, descrições, polêmicas, acordos e desacordos.

A outra categoria é a dos feiticeiros, os seres que vão morrer, que não podem, em qualquer momento, se dar ao luxo de afirmações intelectuais. Se somos algo, somos seres sem nenhuma importância. E se temos algo, é estar convencido de que vamos morrer e nós temos que enfrentar o Infinito. Quanto à nossa formação, essa é a coisa mais simples do mundo: consiste em estar pronto 24 horas por dia para o encontro com o infinito.

O velho Nagual conseguiu apagar em nós essa ideia nefasta da imortalidade e da indiferença para a vida, e nos convenceu de que, como seres que vão morrer, podemos ampliar nossas opções na vida. Os feiticeiros afirmam que os seres humanos são mágicos, capazes de ações e realizações estupendas quando se desfazem de ideologias que as transformam em pessoas sem capacidade de voar.

Por isso, o que Taisha  Abelar e Florinda Donner têm narrado são na verdade, descrições fenomenológicas de realizações da percepção acessíveis a todos nós, especialmente as mulheres, realizações que são descartadas por nossa fixação com a percepção da auto-reflexão. Os feiticeiros dizem que, para os seres humanos, só existe a preocupação com o “eu, e eu, e somente eu”. E, por definição, o eu pessoal está capacitado apenas para receber e distribuir insultos, raiva e ressentimentos.

P: Vocês contaram com a instrução direta de Don Juan Matus e seu grupo. Vocês realmente acreditam ser acessível para uma pessoa comum introduzir-se e experimentar o mundo dos feiticeiros, mesmo que não tenha um mestre  ao seu lado?

R: De certa forma, a insistência em ter um mestre é uma aberração. A ideia do velho Nagual era que ele estava nos ajudando a romper o domínio do ego; ele conseguiu, com suas piadas e seu terrível senso de humor, que nos fez rir de nós mesmas. Nesse sentido, nós acreditamos, ao pé da letra, que é possível fazer uma mudança semelhante à nossa, através das práticas de Tensegridade sem necessidade de um  mestre pessoal e particular.

O velho Nagual nunca foi um mestre ou guru, não estava interessado em ensinar seu conhecimento e não dava a mínima importância em ser um mestre. O velho Nagual só estava interessado em perpetuar sua linhagem; se  nos guiou pessoalmente, foi para nos mostrar todas as premissas da feitiçaria que nos permitiriam continuar a linhagem, porque ele esperava que um dia seria  a nossa vez de fazer o mesmo.

Circunstâncias alheias a nossa vontade, ou as dele, conspiraram para impedir essa continuidade. Nós, como não podemos exercer a função tradicional de dar continuidade à linhagem dos feiticeiros, queremos difundir esse conhecimento, e uma vez que nenhum praticante de Tensegridade tem a responsabilidade de perpetuar qualquer linhagem de feiticeiros, terá a facilidade de conseguir o que conseguimos, mas seguindo um caminho diferente.

P: A possibilidade de uma morte alternativa é um dos pontos mais impactantes dos ensinamentos de Don Juan Matus. Segundo o que vocês têm nos relatado, ele e seus companheiros alcançaram esta forma alternativa da morte. Qual é sua própria interpretação do desaparecimento deste grupo, convertido no que é chamado consciência de ser?

R: Embora pareça fácil de responder, esta é uma pergunta muito difícil. Somos praticantes dos ensinamentos do velho Nagual, e nos parece que, com sua pergunta, você está solicitando algo como uma justificativa psicológica a altura das explicações científicas da atualidade.

Infelizmente, não podemos te dar uma explicação alheia ao que somos. O velho Nagual e seus companheiros tiveram uma morte alternativa, que é possível para qualquer um de nós se tivermos a disciplina necessária.

Tudo o que podemos dizer é que o velho Nagual e seus companheiros viveram a vida como profissionais, o que significa que eles foram responsáveis ​​por todos os seus atos, mesmo o mais ínfimo, porque eles eram muito, muito conscientes deles. Sob tais condições, morrer de uma forma alternativa não é algo impossível.

P: Vocês se sentem prontas para o salto final? O que esperam mais adiante deste universo que classificaram como impessoal, frio e predatório?

R: O que esperamos é uma luta interminável, e a possibilidade de sermos testemunhas do infinito, seja por um segundo ou por cinco bilhões de anos.

P: Alguns leitores perceberam, especialmente nos livros de Carlos Castaneda, uma maior presença do espiritual, e reprovam que, por exemplo, a palavra “amor” nunca apareça. É realmente tão frio o mundo pessoal do guerreiro, ou as emoções tem um significado diferente?

R: Não usamos as palavras amor ou espiritualidade porque o velho Nagual nos convenceu de que são conceitos vazios, e ao fazê-lo se referia não tanto ao “amor” ou a “espiritualidade” como tal, mas o uso que fazemos de ambos os termos. Para ele eram conceitos sem vigor, palavras que ninguém estava disposto a suportar. Ele afirmava que cada vez que nos deparávamos com essa contradição, a resolvíamos dizendo que, como seres humanos, éramos fracos.

Para sustentar isso, a linha de argumentação do velho Nagual era a seguinte: não é possível fazer algo verdadeiro de amor ou de espiritualidade se nós nos considerarmos, na verdade, como seres imortais que podem se dar ao luxo de  viver   no meio de contradições terríveis e egoísmo ilimitado, e se tudo o que importa para nós é a satisfação imediata. Nos disse que, como regra geral, os seres humanos não foram ensinados a amar, foram ensinados apenas a sentir emoções gratificantes que se referem exclusivamente ao seu eu pessoal. O infinito é sublime e sem piedade, disse ele, e nele não cabem conceitos falaciosos, não importa o quão agradável nos pareça.

P: A chave para expandirmos nossas possibilidades de percepção reside na quantidade de energia que dispomos e, pelo visto, a condição energética do homem moderno é bastante limitada. Quais seriam os recursos para acumular energia? Isto é possível para aqueles que têm de lidar com uma família, executar um trabalho diário e participar plenamente no mundo social? E sobre a castidade como um meio de poupar energia, um dos pontos mais polêmicos em seus livros?

R: O velho Nagual nos disse que a castidade é recomendada para a maioria de nós, não por razões morais, mas porque não temos a energia necessária. Ele nos fez ver que a maioria de nós têm sido concebido sob o tédio conjugal. Como um feiticeiro pragmático, o velho Nagual sustentava que as condições em que é realizada a concepção é algo extremamente importante. Se a mãe não atingir o orgasmo no momento da concepção, o resultado é algo que ele chamou de “uma foda (ato sexual) entediada”. Sob tais circunstâncias, não há energia. Então o velho Nagual recomendava a castidade para aqueles que foram concebidos sob tais circunstâncias.

Outra coisa que Don Juan Matus recomendava como um meio de poupar energia era a dissolução dos padrões de comportamento que levam ao caos, como a incessante preocupação com o namoro romântico, a apresentação e defesa do eu na vida cotidiana e, acima de tudo, a tremenda insistência com as queixas do “eu”.

Se estes pontos forem superados, qualquer um de nós pode ter a energia necessária para fazer um uso mais inteligente do tempo, do espaço e da ordem social.

6 comentários:

  1. P: Alguns leitores perceberam, especialmente nos livros de Carlos Castaneda, uma maior presença do espiritual, e reprovam que, por exemplo, a palavra “amor” nunca apareça. É realmente tão frio o mundo pessoal do guerreiro, ou as emoções tem um significado diferente?

    R: Não usamos as palavras amor ou espiritualidade porque o velho Nagual nos convenceu de que são conceitos vazios, e ao fazê-lo se referia não tanto ao “amor” ou a “espiritualidade” como tal, mas o uso que fazemos de ambos os termos. Para ele eram conceitos sem vigor, palavras que ninguém estava disposto a suportar. Ele afirmava que cada vez que nos deparávamos com essa contradição, a resolvíamos dizendo que, como seres humanos, éramos fracos.

    Para sustentar isso, a linha de argumentação do velho Nagual era a seguinte: não é possível fazer algo verdadeiro de amor ou de espiritualidade se nós nos considerarmos, na verdade, como seres imortais que podem se dar ao luxo de viver no meio de contradições terríveis e egoísmo ilimitado, e se tudo o que importa para nós é a satisfação imediata. Nos disse que, como regra geral, os seres humanos não foram ensinados a amar, foram ensinados apenas a sentir emoções gratificantes que se referem exclusivamente ao seu eu pessoal. O infinito é sublime e sem piedade, disse ele, e nele não cabem conceitos falaciosos, não importa o quão agradável nos pareça.

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  2. se referia não tanto ao “amor” ou a “espiritualidade” como tal, mas o uso que fazemos de ambos os termos. Para ele eram conceitos sem vigor,

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