sábado, 24 de agosto de 2019

A língua na leitura de G. Trakl por M. Heidegger1




Alan Victor Meyer*
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo


À memória de Sonia Azambuja
que escutava os poetas.
Uma Noite de Inverno2
Quando a neve cai na janela,
Longamente soa o sino das vésperas
A casa está bem provida,
A mesa para muitos posta.

Mais que um errante,
Chega à porta por caminhos obscuros.
Dourada floresce a árvore das graças
Da seiva fresca da terra.

O errante adentra em silê\ncio;
A dor petrificou a soleira.
Lá resplandece em claridade pura
Sobre a mesa pão e vinho.

Wenn der Schnee ans Fenster fällt,
Lang die Abendglocke läutet,
Vielen ist der Tisch bereitet
Und das Hausistwohlbestellt.

Mancherauf der Wanderschaft
Kommtans Tor auf dunklenPfaden.
Golden blüht der Baum der Gnaden
Aus der Erdekühlem Saft.

Wanderer tritt still herein;
Schmerz versteinerte die Schwelle.
Da erglänzt in reiner Helle
Auf demTischeBrot und Wein.
Como lidamos com o poema? A maneira habitual seria seguir alguma forma estabelecida pela crítica literária, pela análise filológica ou seguir a ideia romântica de linguagem como expressão de sentimentos e de visões humanos do mundo. A questão que Heidegger se coloca é justamente como quebrar essas determinações. Para ele, o poema é um falar do qual nos aproximamos e escutamos deixando-nos levar por sendas inesperadas.
Ele diz que "A língua fala";. O que ela pode dizer quando não há ninguém falando? Uma de suas respostas seria ouvir o poema de Georg Trackl, como em outros textos ele se dedica a ouvir Hölderilin, Rilke e Stefan George.
Quando a neve cai na janela,
Longamente soa o sino das vésperas
Esse falar "nomeia (nennt) a neve que silenciosamente atinge a janela na tarde do dia que se esvai, enquanto ressoam os sinos das vésperas"; (Heidegger, 1971, p. 198). Não é o conteúdo do que é dito que interessa Heidegger, mas o nomear que ocorre no poema. E ele pergunta: "O que é nomear?";. "Este nomear";, diz ele, "não distribui títulos. Não aplica termos, mas chama para dentro da palavra. O nomear chama. O chamamento torna mais próximo o que é chamado"; (Heidegger, 1971, p. 198). Com essa colocação, nosso autor renuncia a toda forma de determinação da palavra. Dessa renúncia ele trata na sua conferência sobre o poema de Stefan Georg, "Das Wort"; ("A Palavra";) (Heidegger, 1982, p. 139) , cujas duas linha finais dizem:
So lernt ich traurig den verzicht:
Kein ding sei wo das wort gebricht.

Assim aprendi triste a renúncia:
Nenhum coisa seja onde se rompe a palavra.
O sentido forte da renúncia à qual Heidegger se refere é o abandono de todas as formas habituais de tratar a linguagem, seja ela gramatical, lógica ou performativa. Na renúncia há um luto, caracterizado pela tristeza, que acompanha a descoberta da perda, mas, ao mesmo tempo, abre a disponibilidade para outras dimensões da língua.
"O nomear chama"; (Das Nennenruft), o termo ruft situa a linguagem não no âmbito da assertiva, mas do chamamento diante do qual é o que se põe e tem prevalência e não o retorno àquele que chama. Aquele que chama é sempre o Outro inacessível. O toque aqui é de estranhamento, de unheimlich.
A casa está bem provida,
A mesa para muitos posta.
Esses versos parecem afirmações no presente, mas não diz Heidegger, eles falam no modo do chamamento. "Trazem a casa bem provida e a mesa posta para a presença em relação a algo ausente"; (Heidegger, 1971, p. 199) Trata-se de uma presença abrigada no coração da ausência. O que é assim trazido pelo dito é um convite. Convida as coisas a chegarem para poderem se voltar em direção aos homens.
A neve que cai traz os homens sob o céu escurecendo ao anoitecer. O ressoar do sino traz os homens diante do divino. Casa e mesa juntam os mortais à terra. Essas coisas nomeadas-chamadas reúnem a si céu e terra, mortais e divindades. Os Quatro estão numa primordial unidade, uns em relação aos outros constituindo o quaterno (das Gevierte).3 (Heidegger, 1971, p. 199).
Heidegger fala aqui da estada no recolher, no reunir que permite o ser coisa das coisas (Das Dingen der Dinge), e é isso que ele chama de gestação do mundo. Assim, essa primeira estrofe não só nomeia as coisas, mas também chama "os muitos"; que são os mortais que pertencem ao quaterno do mundo.
A segunda estrofe fala de outra maneira ao chamar e nomear os mortais:
Mais que um errante,
Chega à porta por caminhos obscuros.
"Aqui nem todos são chamados, apenas alguns que viajam por caminhos obscuros. Estes mortais podem suportar o morrer (das Sterben) na errância até a morte"; (Heidegger, 1971, p. 200). Estes devem, antes, procurar casa e mesa, não primariamente para si mesmos, mas para os muitos, "pois estes creem que, meramente instalados em em suas casas e sentados à suas mesas, estão já aprovisionados e condicionados pelas coisas (Schon Von den Dingenbe-dingt) e que alcançaram sua morada"; (Heidegger, 1971, p. 200)
Os dois versos seguintes da segunda estrofe nomeiam algo totalmente distinto:
Dourada floresce a árvore das graças
Da seiva fresca da terra.
A árvore firmemente enraizada no solo cresce e abre-se em flor na graça do céu. Ela vai do êxtase da florescência à sobriedade da seiva nutriente. "O poema nomeia a árvore das graças. Sua florescência resguarda o fruto imerecido: o sagrado que salva e que é favorável aos mortais"; (Heidegger, 1971, p. 201). Aqui também reinam céu e terra, divinos e mortais na sua unidade do quaterno (Das Gevierte), que é o mundo. "Mundo aqui não tem o sentido metafísico, não nomeia nem a representação secularizada do universo da natureza e da história, nem a representação teológica da criação e nem a totalidade do presente (cosmos)"; (Heidegger, 1971, p. 201).
O ser mundo do mundo não é um sistema de identidades, mas um jogo de diferenças em que cada elemento do quaterno chega a si como algo singular e estranho. A língua fala (die Sprachespricht) tem um paralelo na formulação "Das Dingen der Dinge";, algo como "o coisar da coisa";4, esbarramos aqui na dificuldade da tradução. O que nosso autor visa com isso é privar a coisa de sua substância como uma entidade subsistente.
Heidegger lembra Píndaro para dar conta do dourado com que começa esses dois últimos versos. Ele a resume na seguinte frase "O resplandecer do ouro resguarda toda presença no desvelamento de seu aparecer"; (Heidegger, 1971, p. 201) "O chamar confia o mundo às coisas e simultaneamente sustenta as coisas no esplendor do mundo"; (Heidegger, 1971, p. 202) É uma dádiva da árvore das graças. Assim, essas duas estrofes solicitam às coisas que venham ao mundo e ao mundo que venha às coisas.
A seguir, o autor prossegue na complexa relação entre mundo e coisa, pois
[...] estes não subsistem um ao lado do outro. Atravessam-se mutuamente. E assim atravessam um Meio (Mitte). Nesse Meio eles são um. No um, eles são íntimos. O meio entre eles é a intimidade. O Meio entre dois, nosso idioma alemão chama "zwichen";, entre. Mas a intimidade entre mundo e coisa não é fusão... no entre mundo e coisa, no seu inter, a divisão prevalece: uma dif-ferença (Unterschied). (Heidegger, 1971, p. 202)
Esse termo tem uma longa história na filosofia moderna, especialmente em J. Derrida, no que veio a ser conhecido como desconstrucionismo. Mas, para Heidegger, a dif-ferença está relacionada nessa conferencia sobre a linguagem, a mundo e coisa, onde ambos devem ser entendidos como acontecimentos (Ereignis) e não como entidades. Aqui, o termo dif-ferença tem um uso único e que não pode ser conceituado de modo habitual. O seu uso é extremamente complexo e é utilizado numa variedade de contextos seja em relação à diaphora, ao acontecimento (Ereignis) e à dimensão. Assim fazendo, Heidegger bloqueia qualquer possibilidade de reduzir a dif-ferença a uma unidade conceitual. A própria maneira pela qual o autor procede é caracterizada por uma errância que o pensamento metódico suprime. Seria vão querer dizer qual o sentido do termo, pois ele só o tem no próprio texto, que convido o leitor a acompanhar.
"A primeira estrofe do poema convida as coisas a virem, ao 'coisar' que sustenta o mundo. A segunda estrofe convida o mundo a vir, ao 'mundear' que consente as coisas. A terceira estrofe convida o meio a vir para mundo e coisa: o realizar da intimidade. Assim a terceira estrofe começa com o chamamento enfático"; (Heidegger, 1971, p. 203):
O errante adentra em silencio;
"O verso chama o errante que se adentra no silêncio5. É o silêncio que domina a porta. Repentina e estranhamente o chamado ressoa"; (Heidegger, 1971, p. 203):
A dor petrificou a soleira.
"Esse verso fala solitariamente no que é dito em todo o poema. Ele nomeia dor. Que dor? O verso só diz dor. De onde e em que medida é a dor chamada?"; (Heidegger, 1971, p. 203).
Só esse verso está no passado e nomeia algo que persiste e já persistiu.
É apenas transformando-se em pedra que a soleira pode se presentificar.
A soleira consiste na viga que sustenta o portal como um todo. Ela sustenta o meio no qual os dois, o fora e o dentro, penetram um ao outro. A soleira sustenta o entre (Zwischen). A confiabilidade do meio não deve ceder em nenhuma direção. Para tanto, precisa resistir e nesse sentido é dura. A soleira que sustenta o entre, é dura porque a dor a petrificou. [...] A dor se faz presente de modo inquebrantável na soleira, como dor. (Heidegger, 1971, p. 204)
"Mas o que é a dor? A dor dilacera. Ela é a fenda. (Der Schmerz reisst. Erist der Riss)"; (Heidegger, 1971, p. 204). Ao mesmo tempo que separa, ela reúne. O termo alemão Riss, aqui traduzido por fenda, poderia ser hiato, abismo, e também a conotação de esboço, desenho (Aufriss) que mantém junto o que é mantido separado. A dor é a juntura da fenda. E a juntura é a soleira. E a dor junta a fenda da dif-ferença. A dor é a própria dif-ferença. (Der Schmezis der Unter-Schiedselbst)"; (Heidegger, 1971, p. 204). Heidegger faz questão de lembrar que não devemos imaginar a dor antropologicamente, como uma sensação que causa aflição, nem devemos pensar a intimidade psicologicamente, como sentimentalidade que cria um ninho para si.
"A dif-ferença presencia já como a presença recolhida, a partir da qual apropriativamente acontecem mundo e coisa. Mas como?"; (Heidegger, 1971, p. 205).
Lá resplandece em claridade pura
Sobre a mesa pão e vinho.
A pura luz resplandece na soleira ao acomodar a dor.
A fenda (Riss) da dif-ferença (Unter-Schied) faz a claridade pura brilhar. A juntura luminosa decide pelo iluminar do mundo no que tem de próprio. O dilacerar da dif-ferença libera o mundo para o "mundear"; que concede as coisas. Ao clarear o mundo no resplandecer dourado, pão e vinho ao mesmo tempo alcançam seu próprio brilhar. [...] Pão e vinho são os frutos do céu e da terra, oferendas dos deuses aos mortais. Pão e vinho reúnem esses quatro na unidade simples do quaterno (das Gevierte). (Heidegger, 1971, p. 205)
Heidegger então resume essa terceira estrofe: "Chama mundo e coisa ao meio de sua intimidade. A sutura que junta sua mútua pertinência é a dor"; (Heidegger, 1971, p. 205) Feito todo esse acompanhamento, dedicará a escuta do poema ao aprofundamento do tema dessa conferencia "A língua"; (Die Sprache).
O chamamento primordial, que invoca a intimidade do mundo e coisas a virem é a autêntica invocação. A invocação é a essência6 da fala. O falar ocorre no que é dito no poema. A língua fala (Die Sprachespricht). Fala invocando o invocado, coisa-mundo e mundo-coisa, a virem para o entre da dif-ferença. (Heidegger, 1971, p. 206)
A seguir, Heidegger se pergunta pelo silêncio e quietude (Stille) e aponta que não é meramente a ausência de som ou movimento. O termo que ele introduz é Ruhe, repouso, e salienta que a dif-ferença deixa o "coisar"; das coisas repousarem no "mundear"; do mundo. Salienta que no repouso há mais movimento que em qualquer movimento. E, a seguir, diz que o soar (Lauten) é o que reúne e que esse soar é mais do que a propagação de uma onda sonora. Podemos pensar no soar do sino das vésperas do poema que, mesmo produzindo som, faz o silêncio soar de modo audível ao ponto de podermos escutá-lo.
"A língua fala como o soar do silêncio [...] a língua, o soar do silêncio, é na medida em que ocorre a dif-ferença"; (Heidegger, 1971, p. 207). E mais adiante: "Esse soar do silêncio não é nada humano. Pelo contrário, o ser humano é falante. E falante significa aqui: levado à sua propriedade pelo falar da língua"; (Heidegger,1971, p. 208). "O ser humano é, assim, entregue à língua e tal apropriação torna-se propriedade na medida em que o sendo da fala – o som do silêncio – necessita e põe em uso a fala dos mortais para poder soar como o som do silêncio a seus ouvidos"; (Heidegger, 1971, p. 208).
Heidegger, ao dizer que o soar do silêncio não é humano, está afirmando também que a língua é algo totalmente estranho ao humano. Com isso, podemos supor que a língua é de fato um outro, uma alteridade radical. Mas, enquanto mortais somos algo linguístico (sprachlich), no sentido de sermos conduzidos ao que nos é próprio pelo falar da língua. O próprio humano é algo estranho devido a um estranho anterior, que é essa alteridade da própria língua à qual somos apropriados. Mas o que é a poesia? Ele diz:
O que é invocado na fala dos mortais é o que é falado no poema. A poesia, propriamente dita, não é nunca meramente algo mais elevado do que a fala quotidiana. Pelo contrario, é antes a fala quotidiana um poema esquecido e esgotado pela usura, do qual mal se consegue ouvir um chamado. (Heidegger, 1971, p. 209)
Podemos concluir que não há nenhuma diferença formal entre a fala quotidiana e a poesia, já que é apenas o resultado do desgaste sofrido. A poesia também não pode ser vista como expressão do interior do homem, pois a fala dos mortais não repousa em si mesma. A questão da poesia tem a ver com o falar da língua (Die Sprache spricht).
Para terminar, nosso autor salienta que nossa relação com a língua é uma relação de escuta (Hören).
Os mortais falam na medida em que escutam. Estão atentos à invocação do mandato do silêncio da dif-ferença, mesmo que não o conheçam. A escuta depreende-se da injunção da dif-ferença que conduz à sonoridade da palavra (lautende Wort). Este falar que escuta e aceita é responder (Ent-sprechen). (Heidegger, 1971, p. 209)
Com esse dizer vemos que não há separação possível entre o falar e o escutar, não podem ser separados analiticamente como atos de um sujeito.
"O homem fala na medida em que responde à língua. Esse responder é um escutar. Ele ouve porque escuta a injunção do silêncio"; (Heidegger, 1971, p. 210). Aqui chegamos ao fim do texto e Heidegger propõe mais uma vez a leitura de "Uma Noite de Inverno";, de Gorg Trakl, pois é no poema que a língua fala. Terminado esse percurso, talvez possamos pensar a poesia (Dichten) como nosso pertencimento à língua e à sua escuta, abrindo-nos ao mistério do aberto.
Nada do que aqui foi dito fica claro em termos explicativos, pois nosso autor foge de explicações e o essencial é a escuta e uma experiência (Erfahrung) com a língua. Esse é o primeiro de seis textos que compõem seu livro A caminho da fala (UnterwegszurSprache) e é o mais curto. É preciso percorrer todos os textos do livro para, aos poucos, ir apreendendo para onde nos conduzem. Acompanhei esse texto de perto, daí tantas citações, pois queria que estivesse presente o estranhamento que provoca. Espero que sirva, pelo que há de enigmático, para provocar o interesse e a curiosidade por essa visada que muda o que entendemos habitualmente por língua e pensar.
Enquanto analistas, temos muito em que nos inspirar nesses textos, pois vão na contramão de tudo o que caracteriza a nossa época. O próprio teorizar psicanalítico ainda procura fundamentar-se no âmbito da metafísica e da ciência, onde a linguagem é reduzida à objetividade da comunicação, o que para Heidegger é trágico, por impedir uma experiência fundamental com a palavra e a fala que surge do lado poético. Entre nós, num curso memorável sobre "Linguagem e Psicanálise";, P. Fédida tomou como base para suas considerações o livro de Heidegger A caminho da fala. Ele terminou esse curso falando a respeito da importância de os psicanalistas frequentarem os poetas. Num texto seu, "O sítio do estrangeiro"; (Fédida, 1992, p.51) ao falar da situação analítica como um lugar, nomeia-o como o sítio do estrangeiro,
[...] que nela descobre a fala quando esta se surpreende escutando aquilo que diz. Considerando-se que Haidegger fala de um sítio do Dito Poético (Die Spracheim Gedicht), é possível conceber esse sítio do estrangeiro como a "ponta de lança"; onde "tudo vem se encontrar"; em recolhimento "e mantém em guarda aquilo que ele traz"; para animar "de transparência e de trans-sonância o que é recolhido e somente através disso liberá-lo em seu ser próprio. (Fédida, 1992, p. 61).
E Fédida (1992, p. 61) continua:
Seria certamente arriscado tomar como poética a fala do paciente, considerando-se, então, que a ele caberia o sítio do Dito, tal como Heidegger o revela no poema de George Trakl. Ao evocar o sítio do estrangeiro, fazemos apelo menos a uma função da regra analítica ou a uma figura ética do analista, do que ao ato de escutar como recurso da linguagem próprio à fala nas palavras usuais da língua.
Fédida foi dos poucos que viram a riqueza desses textos tardios de Heidegger para pensar a linguagem na psicanálise; sua morte prematura impediu a continuidade dessas reflexões. Espero que estas poucas notas possam incentivar os que ainda estão dispostos à errância pelo estranho.

Referências
Heidegger, M. (1971). Language. In M. Heidegger. Poetry, language, thought. (Albert Hofstader, trad.). New York: Harper & Row. (Obra original In Unterwegs zur Sprache (1959), Pfullingen, Verlag Günther Neske).         [ Links ]
____________. (1976). Acheminement vers la parole. (Jean Beaufret, trad.). Paris: Gallimard. (Obra original In Unterwegs zur Sprache (1959), Pfullingen, Verlag Günther Neske).         [ Links ]
____________. (1982). Words. In M. Heidegger. On the way to language. (Peter D. Hertz, trad.). New York: Harper & Row. (Obra original In Unterwegs zur Sprache (1959), Pfullingen, Verlag Günther Neske).         [ Links ]
Fédida, P. (1992). O sítio do estrangeiro. In Luís C. Menezes (Org.). Nome, figura e memória. (Martha Gambini e Claudia Berliner, trad.). São Paulo: Escuta.         [ Links ]


POEMAS


Georg Trakl, poeta austríaco expressionista, nasceu a 3 de fevereiro de 1887 em Salzburgo. Era filho de um vendedor de ferro. Ainda muito jovem, talvez devido à sua instabilidade emocional, inicia-se no consumo de drogas como a cocaína e o ópio. Mantém uma  relação amorosa com a sua irmã (quatro anos mais nova), Margarethe. Trakl vê na sua irmã uma cópia dele mesmo. Esta relação incestuosa  terá grande influência na sua poesia. Em  vários dos seus poemas aparecem alusões simbólicas a essa irmã, como por exemplo no poema Grodek, onde a certa altura se lê: “A sombra da irmã cambaleia , através do silencioso arvoredo , para saudar os espíritos dos heróis “, ou ainda no poema  Blutschuld,  onde Trakl se refere explicitamente a essa relação “ infame”  nos  seguintes versos:

A noite ameaça o leito de nossos beijos
Murmura-se: quem vos livra da culpa?
Ainda trementes da infame e  doce volúpia
Rezamos:  Maria, na tua graça,  perdoa-nos.

Entre 1897 e 1905 frequenta o liceu humanístico estatal em Salzburgo. É um péssimo aluno, sobretudo  nas disciplinas de Matemática, Latim e Grego,  acabando por reprovar  várias vezes. Durante os seus estudos de farmacêutica, em Viana, junta-se ao círculo dos poetas Apollo, que mais tarde se chamará Minerva. É nessa altura que publica os seus primeiros versos. Forma-se em 1910. De seguida reside em Insbruque. Presta serviço militar na Primeira Grande Guerra como oficial farmacêutico. Quebrado e desiludido com o sofrimento do seu tempo, suicida-se, tomando uma sobredose de cocaína, no hospital militar de Cracóvia (Polónia), em 1914.

 Durante o seu tempo de vida, Trakl  ficou apenas conhecido nos meios literários restritos.  Só postumamente vem a ser reconhecido como o grande poeta que é. A sua obra, relativamente pequena, o poeta morreu aos 27 anos, tem  grande influência na  futura lírica de língua alemã e internacional, influenciando poetas como Celan, Krolow, Günter Eich, Peter Huchel, Bobrowski, Ingeborg Bachmann etc.

Hoje, Trakl encontra-se traduzido naquelas que são consideradas as línguas mais importantes do mundo, e é estudado por um grande número de filólogos e pesquisadores de literatura. Trakl foi um dos grandes inovadores da linguagem poética de lingua alemã. E é, tal como Hoddis e Lichtenstein (ambos, como Trakl,  expressionistas), um dos iniciadores da chamada técnica do Reihungsstils, ajuntamento de frases, imagens, metáforas em que, em grande parte dos casos, não existe  entre elas uma ligação sintática nem  lógica.

A  poética  de Trakl é marcada por uma forte melancolia, desespero, solidão, tristeza e busca de Deus. A morte, a ruína e a queda do Ocidente espelham o estado do tempo em que viveu e são afirmações centrais da sua profunda e intensa lírica, carregada de símbolos e metáforas fulgurantes. O Outono e a noite são dois dos principais Leitmotive desta poética fabulosa


Grodek

Ao entardecer as armas da morte
Ressoam nas florestas outonais, as planícies douradas
E os  lagos azuis, por cima, o sol rola, sombrio;
A noite abraça os guerreiros moribundos,
O lamento selvagem de suas bocas quebradas.
Mas o sossego concentra nuvens vermelhas
Entre os salgueiros, onde mora um deus feroz,
O sangue derramado, a frescura lunar;
Todos os caminhos acabam em podridão.
Sob as ramagens douradas da noite e das estrelas
A sombra da irmã cambaleia através
Do silencioso arvoredo para saudar os espíritos dos heróis,
As cabeças ensanguentadas;
E, silenciosas, as escuras flautas do outono ressoam no juncal.
Ó orgulhosa tristeza! E vós altares de bronze,
A chama quente do espírito alimenta hoje uma grande
Dor –  os netos não nascidos.


De profundis

Há um restolhal onde cai uma chuva negra.
Há uma árvore castanha que está sozinha.
Há um vento sibilante que gira à volta das cabanas vazias.
Como é triste esta noite.

Ao lado da aldeia
A doce órfã ainda colhe espigas raras.
Os seus olhos redondos e dourados percorrem o crepúsculo
E o seu colo aguarda o noivo celestial.

De regresso a casa
Os pastores encontraram o doce corpo
Decomposto no espinhal.

Eu sou uma sombra, aldeias distantes e obscuras.
Bebi o silêncio de Deus
Na fonte do bosque.

Na minha fronte galopou um metal frio
Aranhas procuram o meu coração.
Há uma luz que se extinguiu na minha boca.

À noite dei comigo numa charneca,
Cheio de lixo e poeira de estrelas.
Nas avelaneiras tilintavam de novo
anjos cristalinos.


Paisagem

Noite setembrina. Tristes, os gritos obscuros dos pastores
entoam através da aldeia que escurece.  O fogo faísca na forja.
Enorme, um cavalo negro empina-se; as tranças jacintinas da moça
perseguem o fervor das suas ventas purpúreas.
Silencioso, o grito da corça congela na orla do bosque
e as flores amarelas do outono
inclinam-se , mudas, sobre as faces azuis do lago.
Na chama vermelha arde uma árvore; os morcegos esvoaçam com rostos sombrios.


O sol

Todos os dias o sol amarelo aparece sobre a colina.
Bela é a floresta, o animal escuro,
O homem, caçador ou pastor.

Avermelhado, o peixe sobe no regato verde.
Sob o céu redondo
O pescador segue, silencioso, na canoa azul.

Lenta a uva amadurece , o grão,
Quando calmo o dia se inclina,
O mal e o bem estão preparados.

Quando anoitece,
O peregrino ergue suavemente as pálpebras pesadas;
do desfiladeiro sombrio o sol desponta.


Nascimento

Montanhas: negridão, silêncio, neve.
Vermelha, a caça sai da floresta;
Oh! O musgoso olhar do animal.

O silêncio da mãe; debaixo dos abetos negros
Abrem-se as mãos adormecidas,
Quando, decaída, a lua fria aparece.

Oh! O nascimento do Homem. Nocturna, a água azul
Rumoreja no fundo do rochedo.
Suspirando, o anjo caído observa o seu rosto.

Uma palidez acorda no quarto embotado.
Duas luas
Iluminam os olhos da velha empedernida.

Ó aflição! O grito do parto. Com asas negras
As têmporas do menino tocam a noite,
Neve que cai suavemente da nuvem purpúrea.


Crepúsculo  espiritual

Silenciosa uma besta negra
vai ter à orla do bosque.
Na colina acaba o vento calmo da tarde,

as queixas do melro emudecem
e as suaves flautas do outono
calam no canavial.

Numa nuvem negra,
ébrio de papoilas, percorres
o tanque nocturno,

o céu estrelado.
A voz lunar da irmã ainda ressoa
através da noite espiritual.


Canção nocturna *

Hálito da imobilidade. O rosto de um animal
Congela de azul, a sua santidade.
O silêncio na pedra é tremendo.

A máscara de um pássaro nocturno. Um trítono
Suave funde-se num só. Elai! * O teu rosto
Dobra-se mudo sobre a água azulada.

Oh! Espelho silencioso da verdade.
Na têmpora de marfim solitário
Surge o reflexo dos anjos caídos.

*Elai ( aramaico ): meu Deus. Segundo o Novo Testamento,
 Jesus clamou na cruz nesta língua: “ Meu Deus, meu Deus,
 porque me abandonaste? “


Declínio

( 4. Versão ) *

Sob o arco obscuro da nossa melancolia
Brincam , à noite,  as sombras dos  anjos mortos.
Por cima do regato  branco
As aves selvagens partiram.

Absortos , debaixo dos salgueiros brancos,
As nossas faces acariciam estrelas amareladas.
A testa das noites passadas inclina-se sobre nós .
O rosto dos túmulos brancos fita-nos sempre.

Suavemente, o céu desaba sobre a colina desértica,
Os muros escalvados do bosque outonal.
Sob o arco de espinhos
Ó meu irmão , descemos, ponteiros cegos, em direcção à meia-noite.




*Este poema (  há cinco versões ) e mais três versões , faz parte da obra póstuma
( espólio ) do poeta. A quinta versão foi publicada no primeiro livro de Georg Trakl :
Gedichte ( 1913 ), o único livro a ser pubicado com o poeta ainda  vivo. O segundo
livro Sebastian im Traum, que o poeta  já tinha entregue para publicação, foi
publicado póstumo, em fevereiro de 1915, dado que o poeta falecera em novembro
de 1914. Para além destes livros, o poeta deixou muitos poemas espalhados por
revistas e por publicar. Trakl escreveu muitos dos seus poemas em várias versões.


Nenhum comentário:

Postar um comentário