Plano geral: corpos-forças
É um mesmo horizonte que liga o cósmico e o cotidiano, o durável e o mutante, um só e mesmo tempo como forma imutável daquilo que muda. (Deleuze, 2005, p. 28)
Na metalurgia, uma liga é uma mistura homogênea que se dá pela fusão de diferentes metais. Uma liga viabiliza a interpenetração de corpos heterogêneos, em função das conveniências entre eles, as simpatias. Trata-se de um corpo a corpo, onde o jogo de forças oscila entre "odiar o que ameaça e infecta a vida [e] amar lá onde ela prolifera" (Deleuze & Parnet, 1998, p. 67). Tais conveniências, para bons ou maus encontros, concorrem para que novos modos de existência proliferem, quando uma junção de corpos tem potência de dar vida a novos corpos. É por estas simpatias e conveniências que cada sociedade seleciona e assimila os elementos técnicos que possuem as condições de impulsionar sua existência nos mais variados domínios.
"O homem do século XIX enfrenta a vida, e se compõe com ela como força do carbono, mas quando as forças do homem se compõem com a [força] do silício, o que acontece, e quais novas formas estão em vias de nascer?" (Deleuze, 2000, p. 125). [grifo nosso]
Carbono, silício, ferro, cobre são elementos químicos que compõem o mundo. Bronze, latão, aço, etc. são ligas com as quais o homem compõe agenciamentos que integram o estrato antropomórfico da Terra. As estratificações reportam-se à contínua criação do mundo a partir do caos. Divididos em três principais estratos físico-químicos, orgânicos e antropomórficos (ou aloplásticos), os estratos ou articulações são fenômenos de espessamentos, sedimentações, acumulações que transformam continuamente o corpo da Terra (Deleuze & Guattari, 1997b, pp. 216-217). Portanto, idade da pedra, do fogo, do bronze, do ferro são denominações das marcas históricas tributárias da importância destas matérias expressivas e sua utilidade no devir humano. Carvão e petróleo são combustíveis utilizados pelos homens para mover seus utensílios e produzir seus trabalhos. Assim, constituem-se os agenciamentos: homem - cavalo - ferro - estribo - cavaleiro - cavalaria - cruzadas - guerras - conquistas; homem - ferro - trem - ferrovias - industrializações - colonizações; homem - petróleo - oleodutos - automóveis - rodovias - aviões - redes aéreas - navios - redes marítimas - guerras, homem - silício - chip - microeletrônica - informática - infovias.
O domínio ou a conquista da manipulação dos elementos químicos, em especial os metais, marca diferentes modos de viver em coletividades. Tais ligas metálicas, suas tecnologias correspondentes e o agenciamento social que as impulsiona tecem longos fios de encadeamentos que desenham diferentes estilos de sociedades.
Um agenciamento é uma mistura de corpos, é sempre um recorte de uma rede de relações de forças entre corpos heterogêneos que se conectam por uma vizinhança, uma simpatia, uma simbiose, uma interpenetração (Deleuze & Parnet, 1998, pp. 65-66). Um agenciamento ou dispositivo é uma "unidade real mínima" com a qual produzimos os enunciados (Deleuze & Parnet, 1998, p. 6). Ele é, simultaneamente, maquínico dos corpos e coletivo de enunciação (expressão). As duas formalizações são de diferentes naturezas (os conteúdos são as misturas de corpos, e as expressões são os acontecimentos incorporais), independentes, heterogêneas e, entretanto, indissociáveis que se relacionam por conjugação ou vizinhança (Deleuze & Guattari, 1995, p. 29). Os acontecimentos incorporais subexistem nos estados de coisas, só aparecem no embate dos corpos (Deleuze, 2006, p. 5). Os humanos têm a capacidade de doar sentido aos acontecimentos através dos verbos infinitivos ou substantivos deverbais de um idioma. Assim, enunciam-se os acontecimentos que subexistem ao agenciamento homem-natureza.
Entre 3500 a.C. e 1300 a.C., o homem conquistou a fundição da liga bronze (resultante da fusão do cobre com 10% de estanho) (Engels, 1976). Esse período, conhecido como idade do bronze, marcou o abandono gradual dos instrumentos de pedra e, com ele, uma importante mudança qualitativa nos modos de vida em sociedade. A criação de instrumentos de bronze acompanhou o surgimento do homem pastoril, radicado na terra, com a domesticação dos animais e com o início das primeiras formas de agricultura. As comunidades humanas, então, dividiram-se entre os que caçavam e os que cultivavam, sendo que estes ganharam força na medida em que puderam estocar suprimentos (como alimentos, vestes, objetos) mais difíceis de aquisição aos caçadores.
No processo de sedentarização, o homem criou e fabricou seus instrumentos de trabalho, seus instrumentos musicais, seus adornos e suas armas, como a cavilha1 o arado, o carro de boi, a harpa, o punhal, a espada, o machado, a enxada, os adereços de roupa e cabelo. Com o arado e a enxada, ele trabalhou a terra. O carro de boi fez parte do processo de domesticação do animal. O uso do animal para o transporte e para a tração com o carro de boi, ou seja, para além do abatimento para alimento, explicitou uma mudança qualitativa importante nos modos de vida entre a caça e a vida pastoril. O cultivo do alimento gerou o excedente alimentar que propiciou o aparecimento do comércio como instituição regular. Tendo em vista que o excedente alimentar desobrigou (na atividade diária e de todos) da busca pelo alimento, possibilitou o surgimento de uma diversidade de outros ofícios especializados, fazendo surgir os artesãos do tear e do metal, por exemplo, que se afastaram, progressivamente, do trabalho rural (fator desencadeador do processo), construindo novos agenciamentos sociais cada vez mais complexos.
O crescimento diversificado e diferenciado das capacidades e habilidades produtivas fortaleceu as primeiras formas de comércio e de intercâmbio de mercadorias. Com elas também apareceram novas relações de poder entre as comunidades humanas. Na medida em que as trocas entre indivíduos se complexificavam, ganhava consistência gradativa a institucionalização das propriedades privadas, sejam terras ou rebanhos. A fixação na terra acentuou o regionalismo entre os grupos humanos e, assim, surgiram as hierarquias de direitos sobre a propriedade. O controle das jazidas de minério e do processo de fundição do metal delineou as relações entre os diferentes grupos, repercutindo no crescimento das rivalidades grupais e das guerras, tanto para assegurar a ordem estabelecida das coisas quanto para novas transformações sociais.
A antiga região da Bretanha foi um dos focos de batalhas, derrotas e conquistas territoriais em função da abundância desse minério. Os povos que melhor dominaram as técnicas de processamento e de extração dos metais foram os que se suplantaram e se destacaram dos outros, tanto em melhores condições de vida, quanto em vitórias nas batalhas, dando assim origem aos grandes impérios. Por isso, tais utensílios, imbricados numa sociedade, são considerados produtos-produtores-produções das mudanças nos modos de vida. As tecnologias da época, com a metalurgia do bronze, expressaram o modo como se davam o crescimento agrícola e o aparecimento de novos ofícios, o comércio a distância e o contato entre os diversos povos. O arado e o carro de boi, como tecnologias, só foram possíveis, só puderam ser inventados por uma comunidade cujo modo de vida era fundamentalmente agrícola, sedentário, comerciante e guerreiro.
Desde 1200 a.C., quando o homem conquistou a fundição do ferro, minério em abundância e mais duro que o bronze, ele passou a utilizá-lo na fabricação de suas armas e ferramentas. Pela sua resistência e dureza, o arado de ferro permitiu um melhor trabalho da terra e, com ele, o aumento das colheitas e das condições de vida, desencadeando o aumento demográfico nas comunidades. O ferro também possibilitou a fabricação de armas mais resistentes, como a espada, e, com isso, desencadeou-se historicamente a expansão do Império Assírio, do Império Persa, das Cidades-Estados Helênicas, da República e do Império Romano, compreendendo uma vasta região entre Europa, África e Ásia.
O antigo romano era cidadão-guerreiro-proprietário. Na época em que o romano era cidadão e soldado, o exército não constituía algo à parte para a defesa do Estado. Era, antes, uma guarda nacional composta de pequenos proprietários. Os cidadãos distribuídos em classes serviam à infantaria, seguindo uma hierarquia que se expressava também na distribuição dos armamentos de bronze ou de ferro de acordo com sua classificação.
A antiga região da Bretanha (atual Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte) foi invadida e dominada, em 55 a.C., pela República Romana pelo interesse na conquista territorial em virtude da abundância do minério de ferro na região. O agricultor, o artesão, o metalúrgico ou o soldado constituíam modos de vida calcados no valor da força do trabalho humano e, em decorrência dele, surgiram e complexificaram-se as formas de escravidão. Desse modo, a dominação e a domesticação ampliaram-se da relação homem-animal para a relação homens-homens na constituição dos impérios.
O ferro esteve na base da constituição do estribo como aparato tecnológico importante na constituição do cavaleiro e das sociedades feudais (Deleuze & Guattari, 1995. Deleuze & Parnet, 1998). O cavaleiro servia a um senhor feudal, dono de jazidas e de vastas e férteis terras para cultivo e rebanho e de tesouros em ouro, que lhe provia de toda a tecnologia e riqueza necessárias para sua vassalagem: o cavalo, a armadura para proteção e as armas para defesa e ataque, o estribo para sua sustentação e controle sobre o cavalo.
O cavaleiro sustentava uma posição e ação importantes nessa sociedade: guerras, cruzadas, conquistas econômicas, políticas e religiosas. Gradativamente ganhava um título de nobreza de transmissão hereditária. A cavalaria andante, por uma vida em deslocamento, produziu novos modos de experimentar - compromissos, amores, alianças, honra - o tempo.
No século XIX, o Reino Unido da Grã-Bretanha ganhou força territorial e imperial com o domínio das ligas de ferro gusa, aço e ferro doce2 e o domínio da tecnologia de produção a vapor. A Revolução Industrial europeia, movida por carbono e ferro, concentrou os meios de produção em grandes fábricas como decorrência do emprego da máquina a vapor na produção de mercadorias. O aumento de mercadorias demandou novas formas de transporte mais eficazes, mais resistentes (para suportar o aumento de carga) e mais rápidos (para agilizar o comércio). A locomotiva e a ferrovia sustentaram a expansão do império britânico por diferentes regiões do mundo. As ligas associadas às evoluções das sociedades humanas estavam vinculadas às relações de dominação e submissão entre grupos humanos, na disputa por territórios, minérios e forças produtivas. Das pirâmides egípcias (construídas com muito sangue humano sob as pesadas pedras) às ferrovias de ferro e sangue na África, brilhantemente descritas por Joseph Conrad em O Coração das Trevas (1984, pp. 29-30), todas as conquistas foram acompanhadas por formas cada vez mais intensas, eficazes e sofisticadas de dominação.
As guerras eram a sustentação do poder militar, alicerce das monarquias e da nobreza hereditárias nas sociedades de soberania e, também, nas sociedades de normalização e nas sociedades de controle. O carbono, no agenciamento maquínico homem - veículo automotor - combustível, foi elemento base da constituição do carvão e do petróleo. Do petróleo derivaram o asfalto que cobre, prepara e pavimenta as rodovias e os combustíveis que impulsionam os veículos automotores que por elas trafegam.
As turbulências geopolíticas do mundo em torno do petróleo no século XX concentravam-se nas regiões de abundância da matéria-prima, sustentando as grandes disputas pelo domínio do produto e da produção. As relações de dominação tensionaram-se entre as grandes potências de concentração e domínio da matéria-prima, como o Oriente Médio, e as grandes potências bélicas, como os Estados Unidos da América do Norte.
Carvão e petróleo são fontes energéticas que movimentam as rodovias, as aerovias e as vias marítimas e engendram as economias e os modos de vida. Encontramo-nos sob a força da propulsão mecânica pela combustão de corpos carbônicos (carvão, petróleo), aliada à força e à resistência dos metais na produção de produções (mercadorias), na produção da distribuição e na produção do consumo.
O homem, de tempos em tempos, elege, seleciona, toma em seu phylum um conjunto de elementos (carbono, ferro, silício) para criar suas ferramentas, tecnologias, utensílios e, nesses agenciamentos, entra em devir com eles. Esses corpos-forças-acontecimentos são tomados pelo homem para com eles entrar em devir, reinventando continuamente a vida e criando, com isso, seus mundos: feudal, moderno, contemporâneo.
A expressão contemporâneo não dá conta das mutações do mundo, da modernidade até os dias atuais. Contemporâneo, muito mais que designar a atualidade e fixar um tempo histórico, implica pensar a complexidade do mundo (Costa & Fonseca, 2007). A simbiose homem-silício traça um devir. O silício alastra-se como uma fibra que vai do homem ao animal, ao mineral, às células, às moléculas, etc. por uma linha de desterritorialização, que é a condição de aliança necessária ao devir (Deleuze & Guattari, 1997a, p.33).
Hoje o silício é um componente importante na microeletrônica e com ele produzem-se ligas que possibilitam, impulsionam e fazem proliferar as denominadas novas tecnologias de informação e comunicação (TIs). O elemento químico Si, em latim sílex, "pedra", foi identificado em 1800 por Antoine Lavoisier e pesquisado por físicos e químicos franceses com o objetivo de preparar o silício amorfo e cristalino. Na tabela periódica, encontra-se na classificação dos semimetais. É uma matéria que participa da constituição de uma infinidade de corpos. Em agenciamento com o homem no mundo hoje, torna-se linha de fuga na composição das máquinas sociais contemporâneas e força propulsora de novos modos de sentir, pensar e agir.
O silício (Si), matéria de destaque da microeletrônica, permite a ênfase tecnológica do mundo contemporâneo e se torna matéria expressiva desse estado de coisas e de uma ética e de uma estética próprias. O silício, como matéria do mundo, viabiliza novos agenciamentos e propicia uma imagem ética-estética capaz de engendrar novos modos de vida. O conceito de imagem trata da estreita relação dos sentidos humanos com o mundo. As forças que se colocam em ação com a referida matéria criam uma imagem-pensamento tributária de uma estética do silício. Uma estética do silício subsiste na composição de uma imagem, uma paisagem de mundo, expressando um estado de coisas, tornando a matéria expressiva. Trata-se da função estética do silício como um suplemento do estrato antropomórfico que tanto pode servir ao controle quanto à resistência a ele.
O silício, com sua potência infiltrante, torna-se o corpo-conector e condutor com o qual se visam cartografar algumas de suas relações microeletrônicas. Uma cartografia consiste em traçar um mapa das redes de relações de força em um dado agenciamento. Cartografar é acompanhar linhas nas suas singularidades, analisar trajetos e devires através de corpos que comporão o conteúdo e os acontecimentos que constituem a expressão. Uma cartografia produz-se com o evento devir sobre corpos heterogêneos, fluxos-cortes em relações de força. Assim, a cartografia do silício constrói-se em uma espécie de escrita estroboscópica descontínua, rizomática, em que os diferentes elementos escolhidos se conectam formando imagens precipitadas pelas velocidades de leituras.
A tecnologia microeletrônica, possível pelo silício com seus aparelhos (computador, internet, programas de edição de texto, som e imagem, jogos), com seus modos de agregação social (emails, comunidades virtuais, redes sociais, blogs, orkut, facebook, youtube), com suas economias (capitalismo mundial integrado), com suas políticas, como seus modos de apropriação na educação, é produto-produtora dos modos de existência de uma sociedade, que engendra uma estética do silício e é engendrada por ela. Seu uso hegemônico, orientado à produção capitalística do mundo, é uma das potências importantes para as mudanças qualitativas dessa era.
Pensar uma estética é pensar também uma ética, pois uma é inseparável da outra. Uma ética se define por um conjunto de regras facultativas com as quais avaliamos nossa prática. Deleuze (2000, pp. 123-126), pensando com Foucault, enfatiza que tais regras só existem em função do modo de existência que elas implicam. Por elas produz-se a existência como obra de arte, por elas criam-se, inventam-se, produzem-se novos estilos de vida. Por isso, tais regras são, ao mesmo tempo, éticas e estéticas. É nessa direção que se lança, então, esta cartografia, sublinhando os traços imanentes a um modo de existência que se engendra com a força do silício (Si).
O agenciamento microeletrônico do silício faz proliferar o chip e a miniaturização dos corpos eletrônicos. As propriedades e funções semicondutoras do silício, potencializadas pelo agenciamento com outros elementos, permitem a produção de transistores, chips, em uma variedade de circuitos eletrônicos, abrangendo um vasto leque de aparatos tecnológicos presentes no cotidiano urbano de hoje, para além do computador.
Na linhagem tecnológica do silício, apreendem-se alguns pontos singulares do processo de composição de um chip, como um agenciamento complexo de matérias-primas, elementos físico-químicos, tecnologias e processos de produção. Um chip de silício consiste, dentre outros processos, em uma superposição de camadas à base de silício (silício cristalino, óxido de silício, silício do tipo n, silício do tipo p). A composição do silício com boro e gálio potencializa a propriedade semicondutora (conduzir-controlar) que é utilizada nos componentes eletrônicos3. Um semicondutor é assim designado por possuir uma condutividade elétrica intermediária entre um condutor e um isolador, com o qual se pode transmitir e controlar uma corrente elétrica (Enderlein, 1994, pp. 107-111). Um semicondutor pode ser uma liga-meio de ligação porque, ao conduzir, permite a circulação, a conecção e a interpenetração de corpos.
Com o chip de silício, consolida-se um agenciamento entre: (a) as tecnologias ópticas da fotolitografia que possibilitam a miniaturização do circuito eletrônico; (b) o código numérico que acompanha a miniaturização com a compactação da informação em espaço-tempo cada vez menores; (c) a telecomunicação, que permite e expande a comunicação a distância, em velocidade de conexão instantânea. A maleabilidade do silício possibilita produzir uma superfície extremamente plana e de alta resistência mecânica, capaz de suportar a impressão fotolitográfica de circuitos eletrônicos ultraminiaturizados, com alta precisão e conservação, potencializando a transmissão ou o teletransporte de dados de um ponto a outro.
As pesquisas sobre semicondutores já preveem a superação do silício por outro componente. Tal superação deve-se ao fato de a tecnologia ter chegado aos limites mínimos de tamanho do chip de silício para aguentar a crescente miniaturização óptica dos circuitos eletrônicos4. O grafeno surge como possibilidade futura na evolução dos chips. O surgimento do grafeno, fina camada com espessura de um átomo de carbono, considerado o material mais forte do planeta (200 vezes mais forte que o aço estrutural), supera atualmente os limites do silício5. Embora o grafeno, componente carbônico, aponte uma direção possível, ainda é o silício que sustenta as atuais e significativas mutações tecnológicas, econômicas, políticas, éticas e estéticas.
A capacidade de integração de dados (informações, tecnologias, modos de expressão, etc.), de precisão, de controle e de circulação da informação em velocidade crescente, dá nascimento às indústrias das novas tecnologias de informação e comunicação (TIs) e, com elas, um novo paradigma sociotécnico.
Nas incidências do silício e derivados no planeta, o elemento químico Si corresponde a 25% do peso da crosta terrestre. Isso faz com que o silício funcione como quantum de transversalidade. O silício, como componente da terra, é nômade, é um corpo simples que atravessa diferentes corpos e expressa as linhas de desterritorialização da Terra desterritorializada.
Uma paisagem: Vales (Cidades) do Silício
O agenciamento silício-chip-microeletrônica-sociedade mostra o funcionamento da máquina capitalista contemporânea de grande complexidade de encadeamentos. Seu funcionamento maquínico, cujo cruzamento de linhas e de fluxos-cortes produz a revolução das tecnologias da informação, é alimentado pelas forças de atração de grandes investimentos financeiros internacionais, de cientistas, de indústrias e de empresas do mundo todo. Os Vales (Cidades, Montanhas) do Silício são complexos, vastos e inextrincáveis agenciamentos de forças que envolvem, predominantemente, três grandes instituições mundiais: da indústria bélica, da pesquisa em tecnologias da informação e da economia de mercado. Trata-se do devir guerreiro-comerciante do homem que se orienta pelas forças do mercado e do capital e que torna o mundo matéria expressiva de uma estética do silício.
Estas radicais transformações impressas nas denominadas novas tecnologias de informação e comunicação (TI) consagradas como a nova revolução na areia (Castells, 2001, pp. 57-59). Tal revolução na areia, antes de ser tecnológica, é político-social e expressa as mutações do capitalismo mundial integrado (CMI) nas sociedades e no homem do controle (Deleuze, 2000, p.223).
Em âmbito global, a automação da manufatura encontra-se associada à intensificação da informação, gerando uma economia da informação. Este movimento transforma radicalmente a economia mundial. Assim, surgem os novos impérios contemporâneos, transnacionais, das grandes concentrações de riqueza, de pesquisas e de avanços científicos e tecnológicos, motores do mercado, do controle e do poder sobre as máquinas sociais no mundo.
É uma máquina social quem define as ferramentas e as tecnologias em uma sociedade, "a máquina é sempre social antes de ser técnica" (Deleuze & Parnet, 1998, p.84). É possível fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de máquinas técnicas, não porque sejam determinantes, mas porque elas exprimem as máquinas sociais capazes de lhes darem nascimento e de utilizá-las. As máquinas técnicas são peças de uma máquina social - concreta e abstrata; é ela que secreta, anima, distribui, constituindo um phylum maquínico com as ferramentas, utensílios e tecnologias nos diferentes momentos do devir-humano da Terra. A microeletrônica do silício, em marcha, é constituída e selecionada por uma máquina social que assimila o silício em seu phylum maquínico e constrói um largo espectro de ferramentas e tecnologias, próprias das sociedades em rede e das sociedades de controle. Um phylum maquínico é uma matéria não formada, uma matéria em transformação que comporta elementos heterogêneos - singularidades, qualidades, operações, linhagens tecnológicas itinerantes (Deleuze & Guattari, 1997b, p.229). É esse phylum que anima novas máquinas sociais políticas, tecnológicas, econômicas, culturais, biológicas, artísticas. As matérias, as tecnologias e suas ferramentas e os acontecimentos permanecem marginais até existirem as máquinas sociais - o agenciamento coletivo de enunciação - que os tome em seu phylum maquínico (Deleuze & Parnet, 1998, p. 84). Uma linhagem tecnológica itinerante (a eletrônica, a microeletrônica, a informática e a telemática) mostra, em seus agenciamentos, a máquina social que lhe dá consistência.
É do funcionamento maquínico da microeletrônica conduzir ou teletransportar informações, aumentar a velocidade ou acelerar a condução, ligar, integrar dados, conectar pontos, gerar redes, rizomas, fragmentar o espaço e o tempo, conservar, dar precisão e controlar a informação. Aos acontecimentos (ligar, conduzir, acelerar, precisar, conservar, dinamizar) somam-se o monitoramento e o controle da informação, seja dos preços, das notícias, do capital, do consumo, das imagens clichês subjetivantes, seja do interesse, das escolhas, das disponibilidades populacionais. Assim, a velocidade, a precisão, a integração e a circulação de dados, a infinitesimal miniaturização de circuitos eletrônicos e a infinitezimal fragmentação do tempo aparecem no funcionamento de uma maquinaria social hegemonicamente orientada para o controle, para o mercado, para as concentrações de capital. A máquina capitalista, constituída por fluxos heterogêneos que circulam e fecundam o socius, opera modos de subjetivação social dominantes com a fabricação do consumidor, do internauta, da geração on-line, cujas imagens-clichês e territórios existenciais se balizam pelo consumo de bens e mercadorias. Trata-se de uma imagem do pensamento produto-produtora de uma estética do Silício, dentro de uma sociedade de controle.
Controle e poder
Pensando com Burroughs, Foucault e Virilio, Deleuze (2000, pp. 219-226) sublinha o controle como traço intensificado nas sociedades contemporâneas. O movimento e a velocidade (ressaltados pelo controle contínuo e pela comunicação instantânea, amplificados pela microeletrônica, nas máquinas cibernéticas e nos computadores) delineiam as sociedades de controle, agregam força às relações de poder, remanescentes das sociedades de soberania e de normalização estudadas por Foucault (2007a). O avanço da microeletrônica do silício favorece uma desterritorialização maquínica que opera o controle por modulações, por distribuição e acesso à informação, por monitoramento e vigilância dos espaços sociais e dos comportamentos coletivos e individuais (sorria, você está sendo filmado) ou pela produção de imagens-clichês homogeneizantes para subjetivação e consumo.
As TIs constituem maquinarias de controle, produzindo máquinas técnicas para controlar de forma mais eficiente os fluxos do desejo: preço, consumo, opinião, informação, dados, imagens, sons, discursos, pixels, bits, bytes, impulsos eletromagnéticos, etc. Com a microeletrônica do silício, o controle ganha força. O silício encontra-se assimilado nesta máquina social, concreta e abstrata, cujo phylum maquínico serve ao controle e à implantação do capitalismo mundial integrado - CMI (Guattari, 1996). O controle torna-se traço que transversaliza chip, microeletrônica, mercado mundial, modos de subjetivação social, funcionamento das instituições, comportamentos dos indivíduos. As formas velozes de controle ao ar livre proliferam com diferentes modulações as quais funcionam como moldagens autodeformantes (Deleuze, 2000, pp.220-221).
Às rodovias, ferrovias, aerovias e vias marítimas acoplam-se as infovias; a força do carbono reúne-se à do silício. Mesclam-se duas concepções de força motriz: uma calcada no petróleo, combustível que aciona a propulsão no deslocamento dos corpos automotores, e a outra calcada nas ondas eletromagnéticas, no movimento do elétron, na força-fluxo da eletricidade que viabiliza a tomada do silício como semicondutor eletroeletrônico. As sociedades contemporâneas investem tanto na força reguladora econômica da tecnologia do petróleo quanto nas novas tecnologias da eletricidade e da informática.
Enfatiza-se a diferença entre os processos energéticos empregados: combustão e eletrização. Em ambos os processos, há o afastamento da ideia de origem do movimento concebido sob a base da alavanca propulsora. Em ambos os processos, o movimento é concebido sob a ideia de inserção em uma onda pré-existente (Deleuze, 2000, p. 151) e dentro de um percurso. Essa mudança é entendida como uma transformação qualitativa importante entre um modo de existência e outro.
As redes relacionais e tecnológicas de transporte e de comunicação de informação, presentes no mundo hoje, consolidam uma máquina complexa e importante para o mercado mundial. Disseminando a informação em cada vez mais larga escala, existem as grandes empresas de uma nova economia mundial. As empresas ponto com, pela capacidade de diminuir distâncias, facilitar e acelerar a comunicação e dinamizar a economia, são consideradas a menina dos olhos dos grandes investidores e detentores do capital no mundo (Fanelli, 2004).
Tal economia da informação demanda a criação de redes de informação e comunicação de dados, peças fundamentais para o monitoramento dos fornecedores, controle dos canais de distribuição e transporte e, consequentemente, do valor de mercado de bens e mercadorias no mundo6. Tal economia da informação mostra o deslocamento do capitalismo da produção para o capitalismo do produto-mercadoria e para o capitalismo de mercado financeiro. É a lógica da empresa que explora o controle, uma linguagem numérica de uma máquina binária (Deleuze & Parnet, 1998, p.31) feita de cifras, de senhas e de cartão eletrônico que marca o acesso ou não à informação, à entrada ou não em um ambiente, em uma conta bancária, em uma casa, em um quarto de hotel. Assim, opera-se a relação de força que dá ou não acesso e que detecta cada um no seu percurso (Deleuze, 2000, pp. 222-224). A lógica da empresa se alastra como alma-gás, rivalizando os indivíduos, dividindo-os em amostras, dados, fatias de mercado, assujeitados nesse jogo.
Toda essa linguagem é feita pela redundância como modo de existência e de propagação das palavras de ordem. Dessa maneira, o mercado e o capital contemporâneos promovem um processo de subjetivação homogeneizante orientado para uma lógica capitalística de mundo que se compõe com uma estética do silício: "Ficará estabelecido tantas dicotomias quanto for preciso para que cada um seja fichado sobre o muro" (Deleuze & Parnet, 1998, p.31). Esta ética-estética expressa um modo de existência que se reterritorializa quando se encontra sob a força da "homogênese capitalística de um equivaler generalizado" (Guattari, 1993, p.69).
Guattari enfatiza as três bases que sustentam tal lógica: o capital como modo dominante de organização e de valorização social e da vida; o significante que acomoda e paralisa o pensamento impedindo-o de lançar-se às suas virtualidades infinitas; a subjetivação que nos aprisiona, nos encarcera em sujeitos, identidades, comportamentos, atitudes sociais, opções sexuais, atividades profissionais, campos de conhecimento, cegando-nos para a multivalência dos universos de valor (Guattari, 1993, p.42). Este é o modo reterritorializante do controle que fabrica desejos para o consumo massivo, que estabelece modelos e padrões físicos, sociais, culturais a serem seguidos, consumidos e alimentados, que opera pela fabricação em série subjetividades homogeneizantes, dentro de um território e de um mercado.
Mas um agenciamento maquínico do desejo e coletivo de enunciação comporta também um outro movimento, as desterritorializações, que são indissociáveis das reterritorializações; uma é simultânea à outra (Deleuze & Guattari, 1997b, p.218). O movimento de desterritorialização é a operação de linhas de fuga que podem ser compensadas e/ou capturadas por um procedimento de reterritorialização. As linhas de fuga operam um movimento de desterritorialização que abre o agenciamento territorial aos intercessores que o reinventam, que o desterritorializam e, simultaneamente, as linhas de integração operam um procedimento de reterritorialização que o estratifica. Tanto proliferam forças de controle de acesso, de monitoramento, de conservação do estado de coisas quanto proliferam forças articuladoras, potências de invenção de novos modos de existência.
Outras emergências: uma Estética do Silício
A imprensa fez a renascença. A eletrônica está nos fazendo. John Cage7 ( citado por Rodrigues, 2005).
É com a arte que experimentamos novas forças emergentes no agenciamento microeletrônico do silício. A arte, em sua potência de invenção de novos modos de vida, é o plano potente para a produção de outras linhas de fuga e de resistência a um tipo de controle.
Na esteira dos movimentos da arte, orientando-se pelas rupturas com o estabelecido, as interlocuções com as tecnologias microeletrônicas impulsionam um vasto espectro de misturas e de modos de expressão que se multiplicam e se afirmam pelas infovias, dando a ver uma outra face: a de uma estética do silício. No agenciamento das tecnologias de figuração óptica com a microeletrônica, alguns estudos são apontados acerca da imagem visual (numerizada e técnica), com os quais se procura tecer a construção gradativa de uma outra imagem.
Couchot confirma o controle na produção visual ocasionado pela imagem [visual] numerizada (Couchot, 1996, p. 38). Para o autor, a imagem numerizada que esquadrinha a imagem visual possibilita o agir sobre um único ponto (pixel) ou dominá-lo totalmente.
Neste mesmo sentido, Machado (2007, pp. 224-225) mostra, em uma linhagem tecnológica que compreende as imagens [ópticas] técnicas, provenientes das tecnologias de figuração derivadas da óptica renascentista, uma tendência ao controle, no sentido de precisão, na captura do mundo visível. Analisando o mundo a partir do pensar com as artes visuais, o autor aponta a existência de dois diferentes movimentos de mundo: um com tendência ao fortalecimento da óptica renascentista e outro em ruptura com esta (Machado, 2007, p. 228-234). A imagem técnica é a própria imagem de um outro modo de existência, de um outro homem que surge com seu advento, assinalando o enfraquecimento das máquinas que engendraram o homem medieval com o surgimento das máquinas que formam o homem renascentista. Na passagem, então, ao homem moderno e deste ao contemporâneo, a microeletrônica e o código numérico apresentam uma nova diferença qualitativa, uma nova simbiose que também elege o silício.
O que nos interessa extrair dos referidos estudos (Machado, 2007; Couchot, 1996) é a ideia de que imagem técnica ou imagem numerizada, ao orientar-se para a fragmentação infinitesimal em busca de um constituinte mínimo, assinala duas linhas: anuncia uma resistência, uma desterritorialização molecular na mutação para a imagem digital. Porém, tal desterritorialização técnica torna-se imperceptível à máquina social, na medida em que o foco hegemônico do agir procede por uma reterritorialização sobre o estado de coisas. A tendência ao controle da matéria visual, da imagem óptica, age, predominantemente, pela precisão e conservação da informação, operando, com isso, uma prevenção contra o ruído da informação e o descontrole das formas. Move-se pela precisão, pela alta definição na captação ou na simulação da imagem visual objetiva.
Simultaneamente, anuncia-se um movimento de desterritorialização técnica agindo nos aparatos ópticos. Na linhagem tecnológica que tece o fio das técnicas de figuração óptica (do desenho, da pintura, da fotografia, do cinema, do vídeo magnético - o home system VHS, da fotografia, do vídeo digital), da pincelada na tela, do negativo fílmico para o píxel ocorre uma desterritorialização, uma ruptura imanente à mutação para o pixel. Atualizam-se fissuras que fazem proliferar novas simbioses derivadas do agenciamento homem-silício.
O píxel, como constituinte mínimo da imagem visual numerizada (Couchot, 1996), já não se parece mais com o fragmento óptico de uma dada realidade, como é o caso do negativo fotográfico ou mesmo do vídeo magnético. Ele é código numérico. Ocorre uma mudança qualitativa importante: o código numérico intervém no plano da arte, com as artes visuais, literárias, musicais, em diversas formas audiovisuais digitais disponíveis hoje na via da World Wide Web , rede de alcance mundial. A diferença consiste na irrupção de algo novo, que tem a potência de escapar ao controle. Ou, de outro modo, pode-se dizer que o grau de potência e de liberdade deste agenciamento (Deleuze & Parnet, 1998, p. 83), promovido pela simbiose homem-silício, pode ser ampliado. Uma nova simbiose implica em um novo grau de potência ou de liberdade. O que pode, então, o agenciamento homem-silício?
O pixel, nascido na tendência à precisão e ao controle, potencializa uma livre experimentação com as formas que irão produzir distorções, hibridações, transgressões, n modos de dispersar a óptica moderna. O código numérico, para fins de controle, possibilita o enlaçamento de matérias diferentes, dá densidade a novos acoplamentos maquínicos de matérias heterogêneas (sonoras, luminosas) ultrapassando as fronteiras entre diferentes modos de expressão musicais, literários, cinematográficos, televisivos, pictográficos.
O código numérico codifica som e luz em bits que, via programas, descodifica-os novamente em imagens visuais e imagens sonoras ou embaralha os códigos quando uma música pode tornar-se imagem visual a cores ou uma composição visual pode se tornar acordes (Machado, 1990). Então, a máquina social que enfatiza o controle não impede que suas ferramentas e tecnologias operem uma potência de liberdade, um poder de proliferação. É outra face da estética do silício. Nesse nível molecular de forças, fabrica-se uma dessubjetivação relativa, capilar e inventiva que se manifesta na experimentação possível, dentro do repertório dado pela máquina técnica, que prolifera na rede. É nas linhas micromoleculares que atravessam diferentes domínios que se encontram os traços intensivos, expressivos dessa ética-estética.
A proliferação marca uma importante diferença nas noções de posteridade ou descendência (Deleuze & Parnet, 1998, p. 67). Entende-se que posteridade e descendência reportam-se a um passado histórico, enquanto que a proliferação traça o plano intensivo das forças pelas vizinhanças e simpatias. É por proliferação que a vida acontece. A proliferação dos modos de expressão com as tecnologias microeletrônicas de figuração pictórica, gráfica, óptica, de criação-edição de textos, imagens audiovisuais; do agenciamento entre modos de expressão heterogêneos (pintura, desenho, fotografia, vídeo, animação, sons eletrônicos, músicas, poesia, etc.) esgarça as possibilidades pela proliferação de misturas, promovendo um embaralhamento das formas e dos modos preexistentes.
Salienta-se que a proliferação de formas audiovisuais8 nasce com estas tecnologias mais acessíveis hoje e disponíveis para consumo-produção em diversos níveis de profissionalização ou amadorismo. Consumir a tecnologia de produção, aqui, toma o sentido de explorar o corpo tecnológico (um meio, uma mídia, um programa), de experimentar as possibilidades técnicas, de esgotá-las ou de esgarçá-las na medida em que a experimentação se orienta, pela invenção ao impensado. O agenciamento microeletrônico do silício compõe-se na transversalização de diferentes domínios, marcando novos territórios existenciais com seus planos intensivos de forças.
No agenciamento de diferentes formas de expressão, com a microeletrônica surge uma outra imagem-tempo do homem. Com Guattari (1996, p. 177-182), apreendem-se algumas mutações subjetivas encarnadas por agenciamentos microeletrônicos do silício. Isto permite pensar em uma virada em relação à modernidade mass-midiática, dando nascimento potencial a essa nova era que ele denomina pós-mídia. Com ele entende-se também que a informática, de forma predominante no fluxo da linguagem, reproduz antigas relações orais e escritas e, assim, reforça os sistemas de alienação pré-existentes, amplificados com as sociedades de controle.
Porém, hoje, a crescente e diversificada bricolagem de matérias e meios distintos disponíveis na web, como modos de expressão do homem, leva a pensar no ultrapassamento da tensão escrita audiovisual marcada por Castells (2001). Cruzando as linhagens tecnológicas da escrita, da impressa, da televisão, da microeletrônica, ou seja, dos meios de comunicação, o autor apresenta um embate entre escrita e mundo audiovisual. Com o advento da escrita, agrega-se a ela o valor de abrigar em si grande parte das discussões conceituais do mundo, produzindo, como efeito, um afastamento do pensamento filosófico do mundo dos sons e das imagens visuais que se refugiam no campo das artes (Castells, 2001, p. 353).
Esta tensão gera uma dicotomia que se instala entre o mundo audiovisual e a escrita (sistema alfabético de comunicação) no pensamento o qual opera sob uma lógica que hierarquiza um modo de expressão sobre os outros. O ultrapassamento direciona-se a um esgarçamento dos sentidos carregados pelas forças da luz e do som na matéria expressiva. Segundo Guattari (1996, p. 187), a microeletrônica, na idade da informatização planetária, dá possibilidades para o surgimento de uma processualidade criativa e singularizante, capaz de promover mudanças nos posicionamentos e nos comportamentos do homem. Frente a tal constatação, ele lança a pergunta que age como disparador à pesquisa: "Que ações poderão permitir que tais potencialidades encarnem uma nova era?"
Os traços expressivos mapeados nesta cartografia, nos agenciamentos humanos e não humanos do homem-silício, operam na tensão de forças de controle e de ruptura, por transborde, por proliferação de novos modos de existência. Novos modos de existência implicam em enormes e, quase sempre, lentas transformações nas instituições sociais. Dentre as instituições, a educação, como campo de ação social, tem vivido, há muito, uma espécie de descompasso entre as mídias, as tecnologias microeletrônicas e os modelos, as estruturas e as práticas educacionais que perduram no ensino, nos currículos, nas salas de aula, até hoje.
Reconhece-se a existência de inúmeros e diversificados projetos de pesquisa e ações das academias, das instituições governamentais de ensino, das escolas, que buscam investir na reinvenção do espaço escolar, porém, o que se busca enfatizar aqui é uma situação predominante dos modos de funcionamento da escola e da prática escolar. A instituição escola, integrante das sociedades modernas e contemporâneas, é tensionada tecnológica, cultural e midiaticamente para uma nova sociedade, para instalar-se nos fluxos dos agenciamentos maquínicos e coletivos de uma estética do silício.
A multiplicação da experimentação de modos de apropriação das TIs na dinâmica escolar, no território da educação formal, pode investir práticas singulares que reinventem essa estética do silício e que sejam capazes de produzir novas expressões de mundo. Trata-se de promover uma estética e uma ética da existência, uma arte da existência que trace um caminho singular, cuja ação de um indivíduo, em suas mudanças processuais, crie um estilo próprio. Trata-se de fazer de uma vida uma obra portadora de certos valores estéticos (Foucault, 2007b).
Isso implica pensar em uma atividade artista, operando em sala de aula, operando na ação docente, operando nos processos do aprender. Entende-se, aqui, que arte se refere ao exercício da potência criadora imanente aos indivíduos que, assolados pelo cotidiano massificante, podem fazer-se distantes daquilo que seus corpos experimentam e sentem. É a operação artista da vontade de potência nietzschiana. É a invenção de novos modos de vida (Deleuze, 2000, p. 123-126). É fazer do trabalho educacional, da atividade docente e da atividade discente, uma relação de forças autopoiéticas. A estética do silício pode facilitar a busca do devir-filósofo, do devir-artista, do devir-cientista de cada um dos envolvidos em seus processos fugidios, pode potencializar processos criativos de pensar e de aprender que atenuem e enfraqueçam os efeitos dos modos de subjetivação que barram a efervescência de um novo devir-homem.
REFERÊNCIAS
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1Prego grande de metal ou madeira, usado para juntar e fixar duas peças de madeira ou chapas de metal.
2Ferro gusa ou branco: composto com 3% a 6% de carbono, duro, porém pouco resistente ao choque e à torção. Aço: composto de ferro com 0,2% a 2,4% de carbono, duro e elástico, de mais resistência e maleabilidade. Ferro doce: composto com até 0,2%, macio e resistente à torção.
3 Acesso em 12 de janeiro, 2010, em http://www.mspc.eng. br/quim1/quim1_014.asp
4 Acesso em 28 de junho, 2010, em http://snnangola. wordpress.com/2008/03/28/a-morte-do-chip-de-silicio/.
5 Acesso em 27 de dezembro, 2010, em http://thejacks.blog.br/2010/04/vale-do-grafeno/.
6A rede Almart é um dos pontos de atenção das pesquisas econômicas que analisam o controle dos preços e, com ele, o controle de algumas modulações do capital no mundo.
7John Cage, escritor e compositor musical experimentalista norte-americano, criador da música de acaso ou música aleatória, como foi denominada por outros músicos e pesquisadores. Participou do movimento Fluxus composto por artistas plásticos e músicos na década de 60 e foi um dos pioneiros na experimentação com a música eletrônica.
8Em destaque as formas audiovisuais eletrônicas que proliferam hoje: via rede, via Youtube, via televisão, via celulares, tocadores de áudio e vídeo, etc. Dentre elas, os Parangolés Eletrônicos, experimentações audiovisuais contemporâneas que nascem na conjugação da atividade do Dj e do Vj (Corrêa, 2008).
Recebido: 15 de Dezembro de 2011; Revisado: 07 de Abril de 2012; Aceito: 18 de Maio de 2012
Elenice Mattos Corrêa é doutora em Informática na educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013). Mestre em Ciências da Comunicação / Mídias Audiovisuais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2008). Licenciada e Bacharel em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1984/1988). Professora da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre. Endereço: Rua Dona Ondina 180/303. Porto Alegre/RS. CEP 90850-020.E-Mail: ninimc@gmail.com
Tania Mara Galli Fonseca é doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996) com Pós-doutorado pela Universidade de Lisboa (2004). Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1978). Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1970). Docente e pesquisadora dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional e de Informática na Educação da UFRGS.E-Mail: tfonseca@via-rs.net
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