A imprensa fez a renascença. A eletrônica está nos fazendo. John Cage7 ( citado por Rodrigues).
É com a arte que experimentamos novas forças emergentes no agenciamento microeletrônico do silício. A arte, em sua potência de invenção de novos modos de vida, é o plano potente para a produção de outras linhas de fuga e de resistência a um tipo de controle.
Na esteira dos movimentos da arte, orientando-se pelas rupturas com o estabelecido, as interlocuções com as tecnologias microeletrônicas impulsionam um vasto espectro de misturas e de modos de expressão que se multiplicam e se afirmam pelas infovias, dando a ver uma outra face: a de uma estética do silício. No agenciamento das tecnologias de figuração óptica com a microeletrônica, alguns estudos são apontados acerca da imagem visual (numerizada e técnica), com os quais se procura tecer a construção gradativa de uma outra imagem.
Couchot confirma o controle na produção visual ocasionado pela imagem [visual] numerizada (Couchot, 1996, p. 38). Para o autor, a imagem numerizada que esquadrinha a imagem visual possibilita o agir sobre um único ponto (pixel) ou dominá-lo totalmente.
Neste mesmo sentido, Machado (2007, pp. 224-225) mostra, em uma linhagem tecnológica que compreende as imagens [ópticas] técnicas, provenientes das tecnologias de figuração derivadas da óptica renascentista, uma tendência ao controle, no sentido de precisão, na captura do mundo visível. Analisando o mundo a partir do pensar com as artes visuais, o autor aponta a existência de dois diferentes movimentos de mundo: um com tendência ao fortalecimento da óptica renascentista e outro em ruptura com esta (Machado, 2007, p. 228-234). A imagem técnica é a própria imagem de um outro modo de existência, de um outro homem que surge com seu advento, assinalando o enfraquecimento das máquinas que engendraram o homem medieval com o surgimento das máquinas que formam o homem renascentista. Na passagem, então, ao homem moderno e deste ao contemporâneo, a microeletrônica e o código numérico apresentam uma nova diferença qualitativa, uma nova simbiose que também elege o silício.
O que nos interessa extrair dos referidos estudos (Machado, 2007; Couchot, 1996) é a ideia de que imagem técnica ou imagem numerizada, ao orientar-se para a fragmentação infinitesimal em busca de um constituinte mínimo, assinala duas linhas: anuncia uma resistência, uma desterritorialização molecular na mutação para a imagem digital. Porém, tal desterritorialização técnica torna-se imperceptível à máquina social, na medida em que o foco hegemônico do agir procede por uma reterritorialização sobre o estado de coisas. A tendência ao controle da matéria visual, da imagem óptica, age, predominantemente, pela precisão e conservação da informação, operando, com isso, uma prevenção contra o ruído da informação e o descontrole das formas. Move-se pela precisão, pela alta definição na captação ou na simulação da imagem visual objetiva.
Simultaneamente, anuncia-se um movimento de desterritorialização técnica agindo nos aparatos ópticos. Na linhagem tecnológica que tece o fio das técnicas de figuração óptica (do desenho, da pintura, da fotografia, do cinema, do vídeo magnético - o home system VHS, da fotografia, do vídeo digital), da pincelada na tela, do negativo fílmico para o píxel ocorre uma desterritorialização, uma ruptura imanente à mutação para o pixel. Atualizam-se fissuras que fazem proliferar novas simbioses derivadas do agenciamento homem-silício.
O píxel, como constituinte mínimo da imagem visual numerizada (Couchot, 1996), já não se parece mais com o fragmento óptico de uma dada realidade, como é o caso do negativo fotográfico ou mesmo do vídeo magnético. Ele é código numérico. Ocorre uma mudança qualitativa importante: o código numérico intervém no plano da arte, com as artes visuais, literárias, musicais, em diversas formas audiovisuais digitais disponíveis hoje na via da World Wide Web , rede de alcance mundial. A diferença consiste na irrupção de algo novo, que tem a potência de escapar ao controle. Ou, de outro modo, pode-se dizer que o grau de potência e de liberdade deste agenciamento (Deleuze & Parnet, 1998, p. 83), promovido pela simbiose homem-silício, pode ser ampliado. Uma nova simbiose implica em um novo grau de potência ou de liberdade. O que pode, então, o agenciamento homem-silício?
O pixel, nascido na tendência à precisão e ao controle, potencializa uma livre experimentação com as formas que irão produzir distorções, hibridações, transgressões, n modos de dispersar a óptica moderna. O código numérico, para fins de controle, possibilita o enlaçamento de matérias diferentes, dá densidade a novos acoplamentos maquínicos de matérias heterogêneas (sonoras, luminosas) ultrapassando as fronteiras entre diferentes modos de expressão musicais, literários, cinematográficos, televisivos, pictográficos.
O código numérico codifica som e luz em bits que, via programas, descodifica-os novamente em imagens visuais e imagens sonoras ou embaralha os códigos quando uma música pode tornar-se imagem visual a cores ou uma composição visual pode se tornar acordes (Machado, 1990). Então, a máquina social que enfatiza o controle não impede que suas ferramentas e tecnologias operem uma potência de liberdade, um poder de proliferação. É outra face da estética do silício. Nesse nível molecular de forças, fabrica-se uma dessubjetivação relativa, capilar e inventiva que se manifesta na experimentação possível, dentro do repertório dado pela máquina técnica, que prolifera na rede. É nas linhas micromoleculares que atravessam diferentes domínios que se encontram os traços intensivos, expressivos dessa ética-estética.
A proliferação marca uma importante diferença nas noções de posteridade ou descendência (Deleuze & Parnet, 1998, p. 67). Entende-se que posteridade e descendência reportam-se a um passado histórico, enquanto que a proliferação traça o plano intensivo das forças pelas vizinhanças e simpatias. É por proliferação que a vida acontece. A proliferação dos modos de expressão com as tecnologias microeletrônicas de figuração pictórica, gráfica, óptica, de criação-edição de textos, imagens audiovisuais; do agenciamento entre modos de expressão heterogêneos (pintura, desenho, fotografia, vídeo, animação, sons eletrônicos, músicas, poesia, etc.) esgarça as possibilidades pela proliferação de misturas, promovendo um embaralhamento das formas e dos modos preexistentes.
Salienta-se que a proliferação de formas audiovisuais8 nasce com estas tecnologias mais acessíveis hoje e disponíveis para consumo-produção em diversos níveis de profissionalização ou amadorismo. Consumir a tecnologia de produção, aqui, toma o sentido de explorar o corpo tecnológico (um meio, uma mídia, um programa), de experimentar as possibilidades técnicas, de esgotá-las ou de esgarçá-las na medida em que a experimentação se orienta, pela invenção ao impensado. O agenciamento microeletrônico do silício compõe-se na transversalização de diferentes domínios, marcando novos territórios existenciais com seus planos intensivos de forças.
No agenciamento de diferentes formas de expressão, com a microeletrônica surge uma outra imagem-tempo do homem. Com Guattari (1996, p. 177-182), apreendem-se algumas mutações subjetivas encarnadas por agenciamentos microeletrônicos do silício. Isto permite pensar em uma virada em relação à modernidade mass-midiática, dando nascimento potencial a essa nova era que ele denomina pós-mídia. Com ele entende-se também que a informática, de forma predominante no fluxo da linguagem, reproduz antigas relações orais e escritas e, assim, reforça os sistemas de alienação pré-existentes, amplificados com as sociedades de controle.
Porém, hoje, a crescente e diversificada bricolagem de matérias e meios distintos disponíveis na web, como modos de expressão do homem, leva a pensar no ultrapassamento da tensão escrita audiovisual marcada por Castells (2001). Cruzando as linhagens tecnológicas da escrita, da impressa, da televisão, da microeletrônica, ou seja, dos meios de comunicação, o autor apresenta um embate entre escrita e mundo audiovisual. Com o advento da escrita, agrega-se a ela o valor de abrigar em si grande parte das discussões conceituais do mundo, produzindo, como efeito, um afastamento do pensamento filosófico do mundo dos sons e das imagens visuais que se refugiam no campo das artes (Castells, 2001, p. 353).
Esta tensão gera uma dicotomia que se instala entre o mundo audiovisual e a escrita (sistema alfabético de comunicação) no pensamento o qual opera sob uma lógica que hierarquiza um modo de expressão sobre os outros. O ultrapassamento direciona-se a um esgarçamento dos sentidos carregados pelas forças da luz e do som na matéria expressiva. Segundo Guattari (1996, p. 187), a microeletrônica, na idade da informatização planetária, dá possibilidades para o surgimento de uma processualidade criativa e singularizante, capaz de promover mudanças nos posicionamentos e nos comportamentos do homem. Frente a tal constatação, ele lança a pergunta que age como disparador à pesquisa: "Que ações poderão permitir que tais potencialidades encarnem uma nova era?"
Os traços expressivos mapeados nesta cartografia, nos agenciamentos humanos e não humanos do homem-silício, operam na tensão de forças de controle e de ruptura, por transborde, por proliferação de novos modos de existência. Novos modos de existência implicam em enormes e, quase sempre, lentas transformações nas instituições sociais. Dentre as instituições, a educação, como campo de ação social, tem vivido, há muito, uma espécie de descompasso entre as mídias, as tecnologias microeletrônicas e os modelos, as estruturas e as práticas educacionais que perduram no ensino, nos currículos, nas salas de aula, até hoje.
Reconhece-se a existência de inúmeros e diversificados projetos de pesquisa e ações das academias, das instituições governamentais de ensino, das escolas, que buscam investir na reinvenção do espaço escolar, porém, o que se busca enfatizar aqui é uma situação predominante dos modos de funcionamento da escola e da prática escolar. A instituição escola, integrante das sociedades modernas e contemporâneas, é tensionada tecnológica, cultural e midiaticamente para uma nova sociedade, para instalar-se nos fluxos dos agenciamentos maquínicos e coletivos de uma estética do silício.
A multiplicação da experimentação de modos de apropriação das TIs na dinâmica escolar, no território da educação formal, pode investir práticas singulares que reinventem essa estética do silício e que sejam capazes de produzir novas expressões de mundo. Trata-se de promover uma estética e uma ética da existência, uma arte da existência que trace um caminho singular, cuja ação de um indivíduo, em suas mudanças processuais, crie um estilo próprio. Trata-se de fazer de uma vida uma obra portadora de certos valores estéticos (Foucault, 2007b).
Isso implica pensar em uma atividade artista, operando em sala de aula, operando na ação docente, operando nos processos do aprender. Entende-se, aqui, que arte se refere ao exercício da potência criadora imanente aos indivíduos que, assolados pelo cotidiano massificante, podem fazer-se distantes daquilo que seus corpos experimentam e sentem. É a operação artista da vontade de potência nietzschiana. É a invenção de novos modos de vida (Deleuze). É fazer do trabalho educacional, da atividade docente e da atividade discente, uma relação de forças autopoiéticas. A estética do silício pode facilitar a busca do devir-filósofo, do devir-artista, do devir-cientista de cada um dos envolvidos em seus processos fugidios, pode potencializar processos criativos de pensar e de aprender que atenuem e enfraqueçam os efeitos dos modos de subjetivação que barram a efervescência de um novo devir-homem.
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