terça-feira, 8 de outubro de 2019

Por uma pragmática do imaginário radical



Conquanto Castoriadis não possa ser dito um fenomenólogo, julgamos apropriado apelidar ante-estrutural sua tentativa de elucidação, por analogia com a categoria (fenomenológica) do ante-predicativo. Esta última constitui recurso para trazer à luz o que é filosoficamente anterior à possibilidade de predicar algo do ser, ou mesmo de posicioná-lo. Castoriadis, por seu lado, empenha-se em elaborar a idéia daquilo que é condição historicamente anterior a qualquer discurso (ou ação transformadora) sobre o sócio-histórico. Ao resultado obtido, chama imaginário radical.
O termo imaginário leva imediatamente a pensar em Psicanálise, especialmente lacaniana. Não estaremos inteiramente errados nesta referência, desde que não assimilemos o projeto a qualquer espécie de freudo-marxismo. Castoriadis não visa a articulações e/ou conciliações entre Marx e Freud. Lança mão de alguns conceitos psicanalíticos, em especial o de imaginário, desviando-o de seu sentido canônico e libertando-o, inclusive, das conotações especulares/alienantes adquiridas na pena de Lacan.18 Talvez a maneira mais sugestiva para entender o modo como se vinculam vertente ante-estrutural e Psicanálise seja apelar a uma citação algo mais tardia, originalmente datada de 1981:
... quase sempre, os filósofos começam dizendo: "Quero saber o que é o ser, o que é a realidade. Ora, eis aqui uma mesa; que é que essa mesa me exibe como traços característicos de um ser real?" Jamais qualquer filósofo começou dizendo: "Quero saber o que é o ser, o que é a realidade. Ora, eis aqui minha lembrança de meu sonho da noite passada; que é que ela me exibe como traços característicos de um ser real? (...) Por que não poderíamos começar postulando um sonho, um poema, uma sinfonia, como instâncias paradigmáticas da plenitude do ser, e considerar o mundo físico como um modo deficiente do ser (...)?" (Castoriadis, 1987b, p.227-8).
Quiçá nenhum filósofo tivesse começado sua reflexão sobre o ser apelando ao paradigma do imaginário antes que Castoriadis se engajasse em tal empreitada, com a radicalidade dele característica. É nesta linha que a Psicanálise lhe pode oferecer algo: uma doutrina que pensa a subjetividade mais a partir do sonho que da mesa.
Neste sentido, o projeto castoriadiano difere bastante de qualquer freudo-marxismo. Não está confinado entre uma teoria da história e uma teoria do psíquico, tampouco obrigado a construir pontes entre conceitos de âmbitos previamente dados, às custas de reducionismos e/ou distorções. Navegando na companhia de certo Freud - sonhador do fantasma e do imaginário - e na deriva quanto a certo Marx - o sistemático, pensador contra-revolucionário -, inventa modos de ser para o psíquico e o sócio-histórico julgados capazes de tomar parte em um projeto político autonomista.
No prefácio de A Instituição Imaginária da Sociedade, ocupa-se em distinguir seu próprio trabalho de eventuais construções de teoria, no sentido herdado do termo. Ao invés de teoria, elucidação: não imagem de algo, mas procura da lucidez indispensável a um projeto político; não um saber sobre a verdade do ser, prévio e exterior à sociedade e à história, mas parte da sociedade e da história. Como estas, a elucidação constitui poiesis.
O que denomino elucidação é o trabalho pelo qual os homens tentam pensar o que fazem e saber o que pensam (...) A divisão aristotélica theoria, praxis, poiésis é derivada e secundária. A história é essencialmente poiesis e não poesia imitativa, mas criação e gênese ontológica no e pelo fazer e o representar/dizer dos homens. Este fazer e este representar/dizer se instituem também historicamente, a partir de um momento, como fazer pensante e pensamento se fazendo. (Castoriadis, 1986, p.14, grifos nossos).
Sendo a história inevitavelmente criação, como poderia não o ser o discurso relativo à história? O que encobre esta indispensável lucidez é a ilusão da theoria, ou seja, de que haja algum Logos - chamemo-lo Mundo das Idéias, Deus, Razão, Espírito Absoluto, Homem19, Leis da História ou Ponto da Vista do Proletariado - a falar pela boca do pensador. Nesta linha argumentativa, o imaginário radical, embora aparentado ao paradigma psicanalítico, nada tem a ver com o "especular", o qual carrega as conotações de "imagem de" ou "reflexo" - subproduto da ideologia platônica, ainda que os que o utilizam costumem ignorá-lo.
O próprio "espelho" e sua possibilidade e o outro como espelho são antes obras do imaginário, que é criação ex nihilo. Aqueles que falam do "imaginário" compreendendo por isso o especular, o reflexo ou o "fictício", apenas repetem (...) a afirmação que os prendeu para sempre a um subsolo qualquer da famosa caverna: é necessário que (este mundo) seja imagem de alguma coisa. O imaginário de que falo não é imagem de. É criação incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/formas/imagens, a partir das quais somente é possível falar-se de "alguma coisa." (Castoriadis, 1986, p.13, grifos nossos).
É bem conhecida a recomendação positivista-durkheimiana de tratar os fatos (sociais, ou outros) como coisas. Igualmente a estruturalista de tratá-los como palavras, a fenomenológica de abordá-los como aparecimentos à consciência, a hegeliana (e quiçá marxista) de concebê-los como momentos da astúcia da Razão. A máxima castoriadiana pode ser dita tratar as coisas - o que quer que se apresente, em qualquer âmbito, na qualidade de ente - como contingência sócio-histórica20 ou instituição, no sentido ativo deste termo (ato de instituir ao qual estão condicionados seus produtos).
Os processos de elucidação, contudo, não são tão simples quanto poderiam fazer crer algumas máximas de efeito retórico. Afirmar que tudo é sócio-historicamente instituído não basta para combater o pensamento herdado (racionalista, objetivista, voz do logos). Este conta com categorias fortemente estabelecidas para pensar a temporalidade, de maneira a imobilizá-la como um já-dado: a causalidade, a finalidade, a sucessão logicamente esperada. Devemos ter em mente, porém, que o pensamento herdado é ele mesmo uma instituição, cuja lógica é a da determinação e a ontologia, a do ser como determinado.
Há vinte e cinco séculos, o pensamento greco-ocidental se constitui, se elabora, se amplia e se aprimora sobre esta tese: ser é ser algo de determinado (einai ti), dizer é dizer algo de determinado (ti Legein); e, obviamente, dizer verdadeiramente é determinar o dizer e o que se diz pelas determinações do ser ou então determinar o ser pelas determinações do dizer e, finalmente, constatar que umas e outras são a mesma coisa. (Castoriadis, 1986, p.259).
De acordo com Castoriadis, a instituição, pelo Ocidente, do pensamento como Razão corresponde ao domínio e à autonomização do Legein, cujas operações são distinguir/escolher/estabelecer/juntar/contar/dizer objetos já postos, independentemente da natureza dos mesmos. As categorias ou esquemas operativos do Legein (dizer/representar) são inseparáveis das de um fazer (teukhein), igualmente determinado enquanto juntar/ajustar/fa-bricar/construir objetos também já postos, uma vez mais a despeito da natureza dos mesmos. A estes modos instituídos, simultaneamente, de dizer/representar e de fazer/atuar, Castoriadis chama lógica conjuntista-identitária.
Como qualquer instituição, esta lógica é arbitrária. Não está fundada em eventuais razões, sendo instituinte do que se compreende como razão. A lógica conjuntista-identitária, todavia, corresponde às exigências de uma das dimensões de todo dizer e todo fazer - a dimensão simbólica -, sem a qual o imaginário radical ficaria limitado ao plano da virtualidade.
Sendo assim, falar em "autonomização" do conjuntista-identitário é, de certo modo, um abuso de linguagem.21
Não temos (...) que "explicar" como e porque o imaginário, as significações sociais imaginárias e as instituições22 que as encarnam, se autonomizam (...) A bem dizer, a própria expressão "se autonomizar" é visivelmente inadequada a esse respeito: não estamos lidando com um elemento que, primeiro subordinado, "se desliga" e torna-se autônomo num segundo tempo (real ou lógico), mas com o elemento que constitui a história como tal. (Castoriadis, 1986, p.192-3).
O problema, portanto, não reside na autonomização do simbólico - em suas dimensões de legein e teukhein - mas, sim, em que este se auto-erija como "o racional" na história e da história. A nosso ver, neste duplo caráter - arbitrário e necessário - do conjuntista-identitário situa-se a principal encruzilhada do pensamento de Castoriadis, cujos problemas retomaremos ao final deste trabalho.


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