segunda-feira, 20 de maio de 2019

O delírio como método: a poética desmedida das singularidades



Tania Mara Galli Fonseca I,*; Luis Artur Costa II,**; Vilene Moehlecke II,***; José Mário Neves II,****

1. Abrindo cartografias
A problematizaçao contemporânea dos princípios metodológicos estabelecidos pela filosofia iluminista e desenvolvidos no decorrer da modernidade é uma das operaçoes que permitiu a construçao de um novo campo epistemico. Ultrapassar a simplificaçao formalista, a reduçao, voltar o método para outros sentidos, além da previsao e controle, tornaram-se partes dos objetivos a serem alcançados pelos pesquisadores das ciencias humanas. O desafio, agora, nao seria mais a busca de uma natureza racional, mas a impregnaçao sensível de suas lógicas embrulhadas, bem como a conexao dos atributos relançados ao hibridismo da imanencia. Para tanto, somos convocados a construir novas tramas e a mapear as crises que geram uma estranha permanencia daquilo que passa e sofre alteraçoes diversas, a tecermos uma densa geografia dos afetos, como uma cartografia das dobras entre o sensível e o inteligível, plano múltiplo que reconecta a heterogeneidade das forças e formas.
Assim, no método cartográfico, construímos formas de compreensao delirantes que ultrapassam as divisoes entre o entendimento (razao), o sentimento (afetos) e a sensaçao (empírico). Ao construirmos formas de ser na pesquisa, relativas a construçao de nossa problemática, erigimos o que aqui denominaremos tecnologias do sensível: agenciamentos maquínicos que constituem ritornelos do pesquisar (FONSECA; COSTA; KIRST, 2008). Trata-se de pequenas máquinas de produçao de mundos que se constroem no campo do impessoal. Ou seja, pensamos uma produçao de modos pautada pela impureza do sensível e pelo desmedido da imaginaçao através de uma poética do desejo.
2. Um método de pensamento e abertura para psicólogos
Na tentativa de romper com o paradigma da simplicidade, que volta a atençao para o homogeneo, ou para a clareza das coisas, direcionamos o olhar para os interstícios, isto é, para um meio híbrido que promove uma nova discussao e um olhar sensível sobre a vida. Assim, ao invés de operar em uma lógica de síntese e análise, que divide o objeto para dele extrair suas idéias certeiras, apostamos nas complexas ligaçoes que investem sujeito e objeto e transformam a ambos, uma vez que sao traçadas outras conexoes entre afetos e imagens. A partir desse modo de construçao do olhar, a pesquisa também se volta para o intempestivo jogo dos sentidos e acontecimentos misturados, na tentativa de compor novas reflexoes e mergulhos sobre os mundos que nos afetam.
Desse modo, a Psicologia nao pode se fechar a essas vibraçoes, pois, nesse caso, ela correria o risco de se tornar mera reproduçao de verdades já reveladas. Perguntamos, pois, como abrirmos o campo psi para novas emblemáticas e perfuraçoes de seus fazeres e dizeres? Como apostar em uma Psicologia que se torna sensível aos acontecimentos e aos encontros com um plano caótico e vivo, produtor de crises e novos enredos para o sujeito e a vida?
Talvez, uma pista seria a própria busca de intercessores em nossos modos de pensar e intervir na construçao de idéias e práticas mais conectadas com as transformaçoes que nos envolvem. Como afirma Deleuze (1992, p. 156): "O essencial sao os intercessores. A criaçao de intercessores. Sem eles nao há obra". Portanto, os intercessores podem ser produzidos entre a ciencia, a arte e a filosofia, pois se tratam de séries misturadas, ou de uma série de vários termos, tais quais potencias do falso que provocam rupturas. Podemos, entao, fabricar os próprios intercessores, como um corte que nos faz pensar, sejam eles "fictícios ou reais, animados ou inanimados".
Assim, buscamos intercessores entre a Psicologia e a Filosofia, a fim de provocar fissuras nos modos de pensar psi e abrirmos seu campo para novas sensibilidades e encontros. Quando operamos em suas linhas fronteiriças, estamos próximos de uma aventura inventiva, pois somos tomados por uma espécie de curiosidade e zelo para aquilo que altera as formas a priori.
Ora, se entendemos que os movimentos da subjetividade sao nômades e transitórios, em suas vibraçoes vamos pousar a nossa atençao, para que, desse encontro singular, seja possível a construçao de uma nova sistemática de sentido. Em meio a complexidade do pensar, abrimos o sensível e o inteligível ao corpo e as reconfiguraçoes singulares do ser, aos intercessores criados, para estarmos mais atentos aos movimentos do desejo que produz sujeitos e os transformam em novos modos de si.
Desse modo, o método de produçao de conhecimento da Cartografia, que se apóia em bases conceituais da Filosofia da Diferença, pode nos auxiliar nessa aventura epistemológica, ao criar redes entre conceitos e acontecimentos, bem como experimentar um plano de alteridade que liga pensamento e afecçao. Nao se trata, pois, de um protocolo de açoes pré-definidas, mas de um mergulho na experiencia, que lança o pesquisador a novas tramas e o convida a transitar em um campo aberto e fugaz, que faz nascer as estratégias de açao e de pensar, ampliando os leques de intervençao do conhecer.
Entendemos, pois, que a Psicologia pode beber de tais fontes, visto que o desafio da produçao de conhecimento sobre a subjetivaçao nos impele a romper com o simples ou o complicado, para buscarmos um pensamento em sua complexidade e abertura, que nos impulsione a pensar sobre a produçao de diferença presente na subjetividade e no contemporâneo. Mexemos, assim, na concepçao de sujeito, como se fosse algo já definido, para acompanharmos os processos sutis e emblemáticos de uma estilística do ser que se constrói a partir de movimentos nômades e ligados a uma contextualizaçao específica e transitória.
A partir dessas questoes, podemos operar com os conceitos da Filosofia da Diferença, a fim de interferir nos modos de produçao de conhecimento da Psicologia, já que o complexo nos impele a novas construçoes de sentido. Além disso, ao ampliarmos o olhar sobre os movimentos da subjetivaçao, também nos lançamos ao desafio de alterar as nossas formas de intervir, uma vez que o tecnicismo em Psicologia nao dá conta das novas redes açao e existencia que cercam os movimentos contemporâneos.
No momento em que lançamos uma práxis psi nesse plano de problematizaçao e questionamento, temos a chance de compor uma espécie de método delirante, que nao busca as verdades prontas, mas se enreda nas perguntas que acionam um emaranhado de operadores conceituais e nos instrumentalizam para novas lógicas de açao. Nesse sentido, nao buscamos um caminho único, mas podemos nos tornar mais sensíveis a criaçao de estratégias e açoes, para ir ao encontro das novas demandas da subjetivaçao e de uma escuta ampliada.
Propomos, pois, a construçao de tais elos, com o intuito de relançarmos o método de pesquisa e de intervençao ao encontro com novos modos de pensar e olhar o mundo, já que os psicólogos também buscam uma transformaçao em seus estilos de trabalhar as problemáticas do ser. Mais do que aplicaçao de um saber, apostamos na desenvoltura do olhar e das práticas, quando operamos com conceitos envoltos em complexidade e criaçao. Somos tomados por esses desafios, para investir na produçao de diferença da própria Psicologia, além de cartografar as transformaçoes do sujeito e da composiçao de novas possibilidades para a construçao de um intervir mais aberto aos movimentos do desejo. Abrimos, pois, o corpo da pesquisa e da práxis, a fim de mergulhar em novas problemáticas e operar redes de afeto entre conceitos e modos de açao.
3. Operando a escala da carta: a cosmogenese no plano das singularidades
A cartografia, que é definida por Kastrup (2007) como "um método formulado por G. Deleuze e F. Guattari (1995) que visa acompanhar um processo, e nao representar um objeto" caracteriza-se como um método inusitado nao tanto pelas "metodologias e procedimentos" que propoe - os quais já apresentam um surpreendente caráter inovador no campo psi - mas sim pela "escala" de observaçao, análise e operaçao proposta. Na definiçao de uma nova "escala" de operaçao do trabalho da pesquisa, encontramos a grande invençao metodológica de Deleuze e Guattari e é desta definiçao que decorrem as principais determinaçoes do método.
A cartografia define-se por uma "escala" paradoxal de operaçao - a escala das singularidades: ao invés de dimensionar-se a partir das generalidades populacionais e de espécie ou a partir do caso, do sujeito, e do indivíduo 1, a cartografia opera um plano paradoxal que se coloca para além destas medidas opostas, molares e homogeneas. Nesse sentido, como observa Deleuze (2006a, p.105-106), "Nao podemos aceitar a alternativa que compromete inteiramente ao mesmo tempo a psicologia, a cosmologia e a teologia: ou singularidades já tomadas em indivíduos e pessoas ou o abismo indiferenciado".
As singularidades constituem o plano do "acontecimento". Nesse plano, nao temos nem o caos do "abismo indiferenciado" onde seria impossível pensar qualquer determinaçao, nem individualidades já formadas; mas singularidades anônimas e nômades, impessoais, pré-individuais. Mesmo sem apresentar o grau de determinaçao do ser individuado, as singularidades nao se caracterizam pela indeterminaçao e indiferenciaçao. Nesse sentido, observa Schöpke (2004, p.38):
Para Deleuze, o campo das singularidades é algo que se interpoe entre o "fundo negro" e o mundo físico, entre o caos e os corpos. Lugar da superfície dos acontecimentos, lugar do verdadeiro transcendental da natureza.
Interposto entre o caos e o mundo empírico, este é o plano das dimensoes intensivas das multiplicidades - das afetaçoes moleculares, dos agenciamentos, dos contágios, das ressonâncias -, que a cartografia busca acessar, mapear e agitar.
Deleuze (1988, p. 438) define as singularidades como "o ponto de partida de uma série que se prolonga sobre todos os pontos ordinários do sistema até a vizinhança de uma outra singularidade; esta engendra uma outra série que ora converge, ora diverge em relaçao a primeira"- ponto de partida que se caracteriza como "ponto-dobra", "ponto de inflexao", que, segundo Deleuze (1991, p. 33),
[...] é o puro Acontecimento da linha e do ponto, o Virtual, a idealidade por excelencia. Efetuar-se-á segundo eixos de coordenadas, mas, por enquanto, nao está no mundo: ela é o próprio Mundo, ou melhor, seu começo, dizia Klee, "lugar da cosmogenese", "ponto nao-dimensional", ponto "entre as dimensoes".
As singularidades, estes "signos ambíguos", sao os operadores do contágio, na medida em que qualquer singularidade pode afetar e ser afetada por qualquer outra, já que nao estao submetidas aos limites e requisitos impostos pelos processos de convergencia das séries, que governa o plano das individualidades - e que implica uma dialética da negatividade e da exclusao do contraditório - produzindo uma condiçao de fechamento e definiçao de uma identidade. Por seu lado, as singularidades operam o contágio segundo uma lógica do paradoxo, cuja potencia de afetar e de ser afetado independe da semelhança e da convergencia, pois elas entram em ressonância e se comunicam por suas diferenças e distâncias.
Os bandos, humanos e animais, apontam Deleuze e Guattari (1997, p.23), "proliferam com os contágios, as epidemias, os campos de batalha e as catástrofes". A cartografia busca traçar as linhas dessas contaminaçoes, fazer um mapa desses campos de batalha, narrar as dramáticas dessas núpcias, talvez seja melhor dizer, desses devires que estao aquém e além da lógica do terceiro excluído. Contaminaçoes, batalhas e núpcias que acontecem ponto-a-ponto, mas que no seu acontecer colocam em ressonância, fazem vibrar uma nova música que reverbera em toda a série.
Nao se trata de uma geografia horizontal abrangendo grandes territórios, ou vertical aprofundando-se em intimidades locais. Trata-se de uma espacializaçao transversal, que atravessa de viés e opera um desvio das leituras instituídas no campo psi. Tal transformaçao do espaço busca acessar algo que é único sem pertencer a um único sujeito ou tipo, uma linha que atravessa irregularmente, de modo intermitente, um território que é de todos e de ninguém. Isto é, aquilo de mais geral e específico a um só tempo, sem nenhum destes ser: o impessoal.
Nessa nova geografia, as singularidades constituem os potenciais que determinam a metaestabilidade dos sistemas, conforme destaca Deleuze (2006a, p.106):
As singularidades-acontecimentos correspondem a séries heterogeneas que se organizam em um sistema nem estável nem instável, mas "metaestável", provido de uma energia potencial em que se distribuem as diferenças entre as séries.
Assim, tomar as singularidades como operadores da cartografia implica um ajuste "perceptivo-conceitual", que descole o "olhar-escuta" do plano das molaridades e consiga tocar o campo dos potenciais e tensoes impessoais e pré-individuais, o plano do sentiendum, que é o que há para sentir, sendo a fronteira insensível - plano que se encontra no ponto limite onde se processa o retorno dentro-fora, no qual o insensível torna-se sensível e vice-versa.
Desse modo, é no movimento em torno desse ponto limite, na sua permanente ultrapassagem, que se produz o infinito e que a dobradura do real se instaura plena de novidade. O real, entao, expande-se em novas realidades-mundos, cujas direçoes sao disparadas pelo pulsar de infinitas singularidades. Na cinesia dessa dobradura, no fluxo dessa ultrapassagem, a cartografia busca sintonizar, fazer-se sensível, deixar-se afetar.
Dessa maneira, a cartografia "substitui" a lógica das substâncias e dos atributos - tao conforme ao pensamento da representaçao - por uma lógica do acontecimento - que se instaura no limite do apreensível, como encontro de linhas e de fluxos de pontos dispersos em velocidade infinita. Decorrente desta "substituiçao" lógica, a cartografia dirige-se para as singularidades impessoais e pré-individuais, no lugar das conceitualidades e individualidades, e opera um deslocamento da "atençao" 2 do plano do atual para o do virtual. Neste sentido, Villani (2000, p.46) define como a "anomalia metafísica da filosofia deleuziana", o interesse que "vai objetivamente para as multiplicidades virtuais e intensas, para as singularidades, e nunca para as conceitualidades, nem para as individualidades".
A cartografia evidencia-se, assim, como um método que nao está voltado a apreender o que está dado, o Um, o Mesmo; mas sim, o que insiste, o que está as portas do presente forçando-o e pedindo passagem. Um método que nao busca tal apreensao como um ato de dominaçao - com a pretensao de recortar um segmento do mundo, congelado na definiçao de um "objeto científico" -, mas como um ato de "captaçao", como uma apreensao que se dá como luta e como núpcias, como um encontro no qual se trava uma batalha e/ou um enlace amoroso, um devir a-paralelo no qual cartógrafo e mundo disparam-se mutuamente para novas criaçoes e movimentos. Assim, o cartógrafo experimenta-se a si mesmo nos encontros que provoca e nos que lhe sao impostos pelo campo. Nao se trata, porém, de encontros de sujeitos e de objetos, e sim da experimentaçao de acoplamentos fractais de singularidades, que se define como uma experimentaçao permanente de mobilidade de fronteiras.
Nos marcos dos encontros, nao cabe falar de neutralidade, pois nao apenas a direçao da pesquisa está plenamente modulada pelo pesquisador cartógrafo, como também o próprio desenvolvimento do campo e suas efetuaçoes estao profundamente implicados pela pesquisa. O mero ato de atribuir estatuto de problema de pesquisa a um tema ou problema pode significar uma importante intervençao num campo determinado campo. Temos, portanto, também instaurado um perspectivismo radical, para o qual o pesquisador nao se coloca a tarefa de representar um suposto campo objetivo, como mais um ponto de vista sobre um campo que se supoe sempre o mesmo; pelo contrário, trata-se de um campo no qual a pesquisa infiltra-se produzindo divergencia e bifurcaçao, "como se uma paisagem absolutamente distinta correspondesse a cada ponto de vista", como observa Deleuze (2006a, p.266) a respeito da obra de arte moderna.
Se nao há mais uma verdade essencial, determinada pelo grau de semelhança com o modelo para definir o ser e, portanto, passível de ser descoberta ou revelada, conforme sentenciou Deleuze 3, resta-nos pensar o ser como expressividade existencial, como uma estilística, um "modo de ser". Uma nova forma de definir um ser que nao pode mais ser colocado fora do devir, um ser que nao existe mais apenas em si, que nao só está no tempo do mundo, mas também no mundo do tempo, um ser que é mundo, que é engendrado a cada encontro mundano, inclusive no encontro com a pesquisa cartográfica. Aqui, a cartografia beira a ontologia, faz-se ontogenese. Uma pesquisa assim concebida, sem a pretensao de "descobrir" ou de "revelar" uma realidade ou um objeto dado, torna-se um poderoso, mas despretensioso, método de produçao/invençao de conhecimento. E, na medida em que se faz ciente da infinidade pulsante no plano de imanencia, transforma-se em atrator de virtualidades que pedem passagem.

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