domingo, 5 de novembro de 2017

Arnheim parecia-se com essa classe-média


Conceito de pós-modernidade.





O mal-estar da pós-modernidade

Karyne Dias Coutinho
Mestranda em Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul


BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.Inquietações da vida contemporânea e suas formas atuais de organização: uma relação de imanência.

Liberdade. Se é possível apontar uma idéia que serve como o fio que conduz Bauman a escrever acerca daquilo que poderíamos considerar como inquietações/incômodos da vida contemporânea, talvez esta idéia seja a de liberdade - não apenas porque tal temática é posta em discussão na maioria dos (senão em todos os) quatorze capítulos que compõem O mal-estar da pós-modernidade, mas também (e talvez principalmente) porque a própria idéia de liberdade - que, mais do que uma ambição, se tornou uma constante e indispensável exigência contemporânea - alimenta as inquietações pós-modernas, diferentemente das inquietações de outrora, que nasciam do demasiado desejo de controle e ordem.

É pelo viés da liberdade individual como condição e demanda pós-moderna que Bauman coloca sob análise algumas transformações e alguns importantes deslocamentos em operação no mundo atual, relativamente às condições sob as quais tratamos de organizar nossas formas de viver. Tais deslocamentos vão sendo apontados ao longo do livro no sentido de situar determinadas características próprias do projeto moderno e daquilo que poderíamos chamar de pós-modernidade, não para demarcar limites entre um e outro, senão para ir assinalando algumas descontinuidades históricas a partir das quais diferentes meios de governarmos - a nós mesmos e aos outros - vão sendo colocados em funcionamento. Em outras palavras: não se trata, de modo algum, de uma tentativa de compreender a "essência" de uma ou outra condição (a moderna e a pós-moderna), descrevendo-as a partir de uma seqüência cronológica de fatos, fases ou mudanças de caráter social, histórico, econômico ou cultural. Trata-se, ao invés disso, de enfatizar determinadas transformações nas formas de conduzirmos nossas vidas para colocar em questão algumas contingências dos espaços e tempos que nós habitamos - e que nos habitam - fazendo do nosso mundo o que hoje é e de nós mesmos o que hoje somos.

Nesse sentido, Bauman salienta que o advento da era moderna coincidiu com a exaltação da ordem como uma desejável realização capaz de construir um mundo estável, seguro, coerente, limpo, sólido, enfim, puro. Daí que a descrição supostamente exata e a classificação da totalidade dos aspectos da vida, decifrados, definidos e organizados, seja uma das mais importantes pretensões modernas. Sob essa perspectiva, aumentariam consideravelmente as chances de intervirmos no mundo (porque totalmente descoberto e explicado) e de o modificarmos no sentido de lhe devolver uma ordem que, por excelência, seria pura e inquestionável. O perfeito mundo moderno seria aquele sobre o qual pudéssemos ter o máximo de controle possível. Dessa forma, o "sucesso" de futuras ações, devidamente planejadas (levando em conta ações passadas), estaria assegurado.

Segurança - que serviu como uma das promessas modernas de um mundo melhor -, Bauman nos alerta: é exatamente com ela que já não podemos mais contar. Em vez dela, vivemos com a companhia constante de uma profunda ansiedade que se faz tão mais presente quanto tão mais as tentativas de uma segura apreensão do real se intensificam. Disso resulta que as nítidas divisões, a inflexibilidade e rigidez disciplinar, a solidez da estrutura da ordem moderna, em que as ações humanas podiam encontrar certezas e portos seguros, deslocam-se para a pós-moderna sensação flutuante de ser. A incerteza e a insegurança que ocupam lugares cada vez mais centrais nos modos de vida contemporâneos estão profundamente conectadas ao fato de que, hoje, a organização dos espaços e o controle da ordem (tanto no que se refere aos problemas de ordem coletiva quanto de ordem individual) estão passando por um crescente e intenso processo de desregulamentação e privatização - que Bauman chama de a nova desordem do mundo: "o que quer que venha a tomar o lugar da política dos blocos de poder assusta por sua falta de coerência e direção e também pela vastidão das possibilidades que pressagia" (p.33).

O autor enfatiza que, na maioria das transformações da organização da vida atual, o que se vê é o crescente engrandecimento das forças de mercado que, de uma forma cada vez mais intensa, chamam para si (porque conferimos a elas) a função de conduzir a ordem do mundo. Eis o paradoxo a partir do qual o autor trabalha com o que o título do livro nos sugere: ordem dá idéia de uma certa fixidez, de uma disposição das coisas cada uma em seus devidos lugares e em nenhum outro mais, um arranjo disciplinar rígido que visa ao bom funcionamento das coisas segundo certas relações. O que acontece, no entanto, no caso das forças de mercado, é que elas estão em constante movimento - e isso significa não fazer parte de nenhum lugar específico; em função de sua mobilidade, novos pontos de convergência aparecem a todo o momento, assim como também são facilmente descartados. Não é de se estranhar que, com formas de ordenação que mudam muito depressa, a segurança que supostamente se tem diante de acontecimentos regulares, precisos e estáveis fica, senão completamente extinta, certamente enfraquecida, exatamente porque as forças de mercado dificilmente mantêm regularidades e porque trabalham com a escassez cada vez maior de regulamentos normativos. Disso resulta que, ao "administrar" a ordem, as forças de mercado - e a incomparável liberdade dada ao capital - acabam por gerar inúmeras desordensresponsáveis pela contínua sensação contemporânea de incerteza e desconfiança - alguns dos muitos mal-estares pós-modernos.

Talvez um dos motivos que me movem a escolher tal obra para sobre ela redigir uma resenha seja o fato de as análises de Bauman servirem-me de inspiração em estudos que venho realizando no curso de mestrado. Tenho de confessar a enorme admiração que sinto por suas colocações acerca das mudanças pelas quais nosso complexo mundo vem passando e, em especial, pela forma com que as apresenta. Mas um outro motivo também se faz preferencialmente presente: considero imprescindível divulgar uma obra que, apesar de não tratar especificamente do campo educacional, em muito contribui para que possamos entender sob outra perspectiva a chamada "crise" pela qual a educação - e a escola, considerada como local legítimo do saber - vem passando. Tal contribuição se acentua se levarmos em conta o fato de que vivemos uma época em que o neoliberalismo tem uma significativa predominância sobre outras formas de racionalidade política - ou seja, sobre outras formas de efetivação do exercício de governo -, utilizando-se da educação (institucionalizada ou não) como um importante meio de produção de sujeitos que correspondam à lógica competitiva neoliberal, ao mesmo tempo em que indivíduos cada vez mais "neoliberalizados" acabam por produzir saberes e práticas que também correspondam a essa mesma lógica.

Se digo que tal obra nos possibilita entender a "crise" educacional do nosso tempo sob outra perspectiva é precisamente porque termos como emancipaçãoliberdadeautonomia, entre outros, são tematizados por Bauman de uma forma um tanto diferente daquela utilizada por muitos discursos educacionais. Nesse sentido, o autor salienta que, dada a dimensão prioritária que a competição do mercado assume na sociedade contemporânea, a questão da liberdade individual de escolha ganha também proporções quase ilimitadas nesse jogo incerto, "aventureiro" e cada vez mais desigual que se tornou a vida cotidiana. Nele, quanto maior for nossa possibilidade e flexibilidade de ação, enquanto seres livres para escolher diante de uma variedade de opções e de caminhos que nos é apresentada, maiores também serão as chances de a liberdade do capital ("à custa de todas as outras liberdades" ) seguir desenfreadamente crescendo. Este é um dos muitos pontos de O mal-estar da pós-modernidade que eu destaco como particularmente interessante às discussões que são travadas no campo educacional. Algumas análises têm continuamente advogado em favor da liberdade contra a idéia de sermos governados por uma busca incessante do capital, pelo consumo desenfreado, por meios de comunicação social e determinadas instâncias culturais que fazem circular a idéia da supremacia da lógica do mercado, ou por qualquer outra forma de governo que supostamente impediria o despertar de uma consciência crítica capaz de nos guiar a uma vida livre de todo o tipo de dominação. Nesse sentido, tais análises caracterizam-se por defender a proposição/consecução de determinados objetivos educacionais que primam pela formação de sujeitos livres, autônomos e responsáveis como algo indispensável e urgente ao processo de transformação social, em busca de melhoria das condições de vida de "toda" a sociedade. Não está em discussão aqui se tais intenções são ou não são realmente boas. Mas certamente não terão o efeito esperado, na medida em que tais análises não levam em conta que, em vez de ser o "outro" do governo - constituindo-se como uma barreira a ele -, a liberdade é exatamente um meio através do qual o governo pode assegurar seus fins, ou seja, é um recurso do governo para que ele se efetive mais rápida e eficientemente. Se, noutras perspectivas, a liberdade é apontada como elemento essencial para que a sociedade se faça mais "justa" e "igualitária" (embora tais termos sejam bastante discutíveis), a perspectiva a partir da qual Bauman trabalha põe em discussão a idéia de que, em nossa época contemporânea, a liberdade não tem feito outra coisa melhor que sobrepor camadas sociais: "a liberdade de escolha, eu lhes digo, é de longe, na sociedade pós-moderna, o mais essencial entre os fatores de estratificação. Quanto mais liberdade de escolha se tem, mais alta a posição alcançada na hierarquia social pós-moderna" (p.118).

É a partir desta e de algumas outras idéias igualmente muito interessantes que Bauman põe em discussão (preferencialmente nos seis primeiros capítulos do livro) aquilo que ele chama de estranhos, destacando quem são os estranhos modernos e quem são os estranhos pós-modernos, como chegam a ser estranhos e sob que formas cada sociedade não apenas os cria, como também luta contra eles. Ao fazer isso, o autor também trabalha com as dimensões da incerteza pós-moderna (algumas delas comentadas anteriormente nesta resenha), passando por questões de identidade, diversidade, pobreza, justiça, entre outras.

Diferentes objetos vão sendo tematizados ao longo do livro, seguindo a maneira envolvente e criativa com que o autor nos apresenta suas idéias. Nos capítulos 7 e 8, Bauman tece comentários extremamente interessantes acerca do significado conferido à arte pós-moderna em sua relação com o Modernismo, tomando-o como um movimento artístico de vanguarda, mas de inspiração e ideais ainda modernos.

Temas como "a verdade, a ficção e a incerteza" povoam o capítulo 9, fazendo dele, a meu ver, um dos que mais podem interessar ao campo educacional não apenas porque trabalha com as noções de verdade, razão, ciência, história e diferença, mas também porque, ao fazer isso, passa por questões referentes ao papel conferido ao filósofo e à tarefa assumida pela filosofia moderna.
Nos outros cinco capítulos finais, Bauman discute, respectivamente, o conceito de cultura, enfatizando a "crise paradigmática" pela qual o discurso cultural está passando (capítulo 10); a "redistribuição pós-moderna do sexo", revisitando a História da sexualidade, de Foucault, na qual aponta três desvios fundamentais, envolvidos com a revolução educacional, e trabalha com a questão da infância e dos sentidos conferidos à sua sexualidade no que se refere à organização e remodelação do espaço e das relações sociais (capítulo 11); a imortalidade e os valores religiosos pré-modernos, modernos e pós-modernos, a partir dos quais faz uma muito útil discussão acerca da importância assumida por "especialistas da alma" e "restauradores da personalidade" em nossa época contemporânea, que, em suas palavras, é "a era do surto de aconselhamento" (capítulos 12 e 13); a origem e os sonhos do liberalismo e do comunitarismo, argumentando que apesar de todas as diferenças de princípios que aparentemente possa haver entre eles, "tanto um como outro são projeções de sonhos nascidos da contradição real inerente à difícil situação dos indivíduos autônomos" (p.245).

Perante tais temas e a forma como são abordados e desenvolvidos no livro, o que mais posso eu dizer de O mal-estar da pós-modernidade se não que, além de ser extremamente atraente, cativante, convidativo e simpático, é da mesma forma útil e de grande proveito a todos/as aqueles/as que estão interessados/as em uma séria, curiosa e instigante discussão acerca de algumas das mais importantes transformações contemporâneas que são, simultaneamente, operações de e operadas por nossas formas também contemporâneas de viver. O livro traz como temáticas de discussão coisas tão aparentemente distantes entre si mas que certamente convergem, senão em muitos aspectos, ao menos em um: o mal-estar da pós-modernidade. Talvez seja isso, e a forma como Bauman coloca isso, o que de mais sedutor encontrei nesta obra.

sábado, 4 de novembro de 2017

“Un cuadro anamórfico en el que hay que buscar el ángulo justo

Ando por una enorme pieza con piso de baldosas y una de esas baldosas es el punto exacto en que debería pararme para que todo se ordenara en su justa perspectiva. “El punto exacto”, enfatizó Oliveira, ya medio tomándose el pelo para estar más seguro de que no se iba en puras palabras. “Un cuadro anamórfico en el que hay que buscar el ángulo justo (y lo importante de este hejemplo  es que el hángulo es terriblemente hagudo, hay que tener la nariz casi hadosada a la tela para que de golpe el montón de rayas sin sentido se convierta en el retrato de Francisco I, o en la batalla de Sinigaglia, algo hincalificablemente hasombroso)

Rayuela, Júlio Cortázar

CAMPO


A bola rola rumo
à cidadela: parece
que o campo se inclina
contra o peito de quem
a defende lá embaixo.
No contra-ataque tudo
ao revés:o piso inclinado
se inverte na linha
do verso, e repete
a tentativa do gol
no campo adverso.
O acaso e o mérito
se confundem
e nem sempre se pode
separá-los com isenção
pois são asas do mesmo vento.
No vaivém do jogo
a bola é leve
ou pesada, e indecisa
às vezes, se resolve
no empate, sendo a mesma
de couro, n 5, de um lado
ou de outro, sem metáforas.

Armando Freitas Filho

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

MODERNIDADE E AMBIVALÊNCIA

Antes de discutir precisamente o que é ambivalência para Bauman, é necessário entender alguns antecedentes. Este conhecimento prévio que deverá ser discutido, tem relação com a formação da modernidade e da sensação tipicamente moderna do progresso. Tomaremos como base o artigo de Sandro L. Bazzanella[1].
A criação do conceito de razão, inventado no ocidente sob o nome de logos, iniciou um projeto de categorização e classificação do mundo. Foi dada largada a uma corrida que tinha na racionalidade sua maior arma. O objetivo da racionalidade era, portanto, eliminar a ambivalência, a possibilidade de dupla interpretação de um fato, de maneiras diferentes de se pensar e agir sobre o mundo.

No entanto, vivemos em tempos de desmoronamento das verdades, tão bem construídas por toda a modernidade[2]. A ambivalência, estado existencial humano, imputa a total falta de conceitos preestabelecidos aos indivíduos, que seguem caminho inverso ao da categorização geral exercida pela razão,
Vivenciamos uma sensação de cansaço, de exaustão, um sentimento de falta de sentido e finalidade da existência. Quase que diariamente desmoronam verdades, certezas que davam sustentação a uma determinada cosmovisão predominante durante a grande parte da ocidentalidade e consequentemente na modernidade[3].
Vivemos com tecnologias de comunicação inimagináveis por nossos bisavôs, mas não conseguimos manter diálogo com nossos vizinhos; utilizamos aplicativos de celular para melhorar a nossa possibilidade de encontrar alguém para sair, ao invés de procurar este alguém através das tecnologias que já estão marcadas em nosso cotidiano. Essas situações criam uma ruptura na lógica implícita à razão.
A cada entrada de ano novo assistimos aos apelos dramáticos de chefes de estados, líderes religiosos e comunitários pela construção da paz mundial, no entanto multiplicam-se os conflitos entre países, povos, culturas, fruto da intolerância cultural, de interesses econômicos e políticos mais variados[4].
Isso porque as mesmas potências que pedem paz, causam guerra no mundo: como no caso de Obama ganhar o prêmio Nobel da Paz e financiar as tropas rebeldes na Síria e o exército israelense[5].
Afinal, devemos ter certeza de que os EUA são bons porque seu presidente ganhou o Nobel ou devemos ter certeza de que os EUA são maus porque fabricam as armas de Israel?
Neste sentido, a ambivalência caracteriza-se pela dificuldade que enfrentamos de nomear, ordenar, dar sentido ao mundo. Estes sintomas de desordem, estes paradoxos expressos em situações ambivalentes na base do modelo civilizatório ocidental, nos trazem um profundo desconforto na medida em que somos incapazes de nos posicionar “adequadamente” a partir de uma determinada ordem que nos possibilite a segurança, fazer opções com garantias diante das inúmeras possibilidades de ação colocadas à existência[6].
Com já dito, esse sentimento de ambivalência não é específico do contemporâneo: se trata de um sentimento plausível na lógica da modernidade. A própria classificação exaustiva da modernidade, as relações que estabelece entre o homem e a natureza, ou a cultura e a natureza, carregam este afeto. O esforço da construção da ordem sobre o caos a carrega.
E o mundo da ordem é aquele no qual sabemos para onde estamos indo, sabemos como calcular a probabilidade de cada evento, sabemos minimizar e maximizar suas consequências. É um mundo estável, que parte de uma lógica cumulativa, que faz do passado, fundamento do presente e em que nós podemos nos basear no passado para traçar um bom futuro. A dinâmica da modernidade está na busca incansável da verdade, da harmonia. Esta noção se tornou hegemônica após passar por cima da cosmovisão anterior, de matriz greco-romana e judaico-cristã.
A construção da ordem civilizatória moderna se efetivou na medida em que sua afirmação significava a secularização de conceitos e perspectivas de mundo judaico-cristãs, do triunfo da vontade humana, da vontade de poder, de domínio sobre o mundo em sua multiplicidade de configurações, por parte de uma racionalidade calculadora e planejadora das múltiplas manifestações existenciais presentes no mundo[7].
O esforço de organizar o mundo empreendido pela civilização ocidental tinha como objetivo eliminar o estranho, o anormal, aquilo que não se encaixaria na construção da ordem. Jogá-los para a periferia da sociedade juntamente com os pressupostos metafísicos que sustentavam a presença deles na sociedade.
Para que a lógica moderna de ordenação do caos na busca de segurança, de garantias e certezas alcançasse êxito, fazia-se mister estabelecer, justificar e fundamentar uma visão imanente da sociedade e da natureza, separadas e afastadas da presença e da interferência direta de Deus e de suas verdades reveladas. Esta imanência seria a possibilidade do homem desencadear uma lógica de organização, planejamento e administração da esfera social e natural do mundo moderno, cabendo unicamente ao homem conduzir a existência na esfera social e natural que o cercava[8].
No entanto, a imanência se transformou em transcendência, na modernidade, com a constituição do Estado, instituição acima dos indivíduos, acima do bem e do mal, que legisla, organiza e utiliza seu poder coercitivo para manter os indivíduos dentro da ordem (ou expeli-los). Aos poucos, foi necessário renunciar ao prazer, aos instintos, para ter segurança, esta, fornecida pelo Estado.
A cosmovisão antropocêntrica se vê com paradoxos insolúveis, substituindo sua perspectiva imanente pela transcendência estatal, substituindo a satisfação individual pela segurança fornecida pelo Estado.
A proposta civilizatória ocidental também separa a natureza do social. A primeira, por sua vez, passa a ser objetivo passivo no mundo, aberto à descoberta humana, refém das experiências humanas. Dentro da civilização ocidental, quem deve explorar a natureza é o cientista: novamente, explica Bazzanella, o imanente é substituído pelo transcendente, na medida em que o cientista passa a trabalhar a natureza longe do mundo social, criando formas artificiais de manipulá-la e estabelecendo leis e princípios universalizantes para ela e para o mundo social. A criação dessas leis descola a possibilidade da sociedade se guiar, ter um fim em si, já que passa a ser gerida por leis que ela própria desconhece.

O paradoxo da ambivalência

O esforço da ordenação, presente da proposta civilizatória ocidental, é colocado em um paradoxo,
O esforço ordenador, purificador da modernidade é uma tentativa de abafar, de revestir por meio de definições estáticas, conceituais, científicas a multiplicidade de forças nas quais se manifesta a diversidade da vida em sua perspectiva ambivalente[9].
Somente a crença e aposta na razão poderia levar às últimas consequências o esforço antropocêntrico de racionalização, ordenação e planejamento do mundo. Ela seria a responsável por guiar a humanidade à verdade, devido seu otimismo gnosiológico. Ainda seria tarefa da razão dar armas para o homem vencer o caos, “a indeterminação, a contingência, afirmando e fundamentando o que é natural e suas leis de funcionamento, o que é humano e seus padrões de comportamento”[10].
É tarefa da razão, portanto, livrar o mundo ordenado de ambivalências, incertezas e contingências que poderiam assolar a humanidade. No entanto, ao agir sobre a lógica cumulativa da Civilização Ocidental, a razão cria o “mito do progresso infindável”[11]: de que a solução dos problemas que vivemos está sempre à frente, que será resolvida cedo ou tarde, a partir de nossos recursos científicos e técnicos. Essa solução faria parte de um rol de novidades salvacionistas sempre evocado e criado dentro do progresso. Se tudo isso é fragmentado, no início da modernidade, com o fortalecimento do Estado, passa a ser centralizado:
Bauman chama-nos a atenção para o fato de que, a partir destas estruturas fragmentadas e ordenadoras do caos, construídas pelo processo civilizatório ocidental moderno, a gerência, o planejamento e a administração de tal arquitetura passam a ser conduzidos por um saber estabelecido, por um conhecimento burocratizado e especializado na “missão” de dar sentido e finalidade à existência humana, ao mundo […] Surgem as propostas de organização da sociedade a partir de propósitos positivistas, liberais, marxistas, socialistas, anarquistas, todos propondo o melhor gerenciamento possível do caótico mundo humano[12].
No entanto, todas as formas de gerenciamento produzem mortes. E Bauman, com seu conceito de ambivalência, nos permite ver que alguns dos pilares do modelo civilizatório ocidental criam uma demanda existencial de alto preço. Na medida em que a civilização ocidental se formava com sua lógica cumulativa e linear, o homem e suas experiências em meio à contingência eram eliminados.
Nenhuma classificação binária usada na construção da ordem pode se sobrepor inteiramente à experiência contínua e essencialmente não discreta da realidade. A oposição, nascida do horror à ambiguidade torna-se a principal fonte de ambivalência. A imposição de qualquer classificação significa inevitavelmente a produção de anomalias (isto é, fenômenos que são percebidos como “anômalos” apenas na medida em que atravessam as categorias cuja separação é o significado da ordem). Assim “qualquer cultura dada deve enfrentar eventos que parecem desafiar suposições. Ela não pode ignorar as anomalias que seu esquema produz, exceto com o risco de perder a confiança[13].

Ordem e ambivalência

A ambivalência para Bauman, desta maneira, pode ser entendida como o reverso da ordem, um incômodo causado pela multiplicidade presente, pela incerteza. Um sentimento de profundo desconforto com a impossibilidade de regrar o mundo ao bel prazer. Ela permite um tipo de sensação diferente da ordem,
a ambivalência coloca-se como a possibilidade de o homem civilizado moderno vivenciar a experiência do sem sentido dos esforços civilizatórios na construção de utopias, de sociedades centradas na coletividade, na racionalidade científica, nos dispositivos da técnica, onde os desejos, as necessidades, as angústias de cada indivíduo são suprimidas em nome da perfeição, da salvação do homem de rebanho, da segurança alcançada pela previsibilidade e domínio sobre o tempo e o espaço, sobre padrões comportamentais estatisticamente definidos[14].
A ambivalência impulsiona o homem moderno a superar posições passivas em relação à vida, situações de aceitação mecânica e binária (como bem e mal, certo e errado). Ela coloca diante do homem a possibilidade de talvez ser inerente às características humanas a incerteza, a contingência e a insegurança.
Bauman incentiva seu leitor a ser cético em relação às próprias certezas e, desta maneira, conseguir visualizar um horizonte maior, diverso, que não reduz todo o cosmo a uma narrativa. E é a ciência quem reduz o mundo com suas leis universalizantes, assim como a instrumentalidade técnica que acaba eliminando o espaço ético entre uma ação e suas consequências possíveis.

O que é ambivalência em Bauman: conclusão

Bazzanella conclui que, apesar do conceito de ambivalência ser algo que aproxima o sujeito de suas impossibilidades e, sendo assim, o coloca em posição de não saber tudo, de viver sem segurança existencial, ele também funciona como propulsão a uma nova forma de relação social,
Para revelar o potencial emancipatório da contingência como destino, não bastaria evitar a humilhação dos outros. É preciso também respeitá-los – e respeitá-los precisamente na sua alteridade, nas suas preferências, no seu direito de ter preferências. É preciso honrar a alteridade no outro, a estranheza no estranho, lembrando – com Edmond Jabès – que “o único é universal”, que ser diferente é que nos faz semelhantes uns aos outros e que eu só posso respeitar a minha própria diferença respeitando a diferença do outro[15].
É por isso que Bauman dá perspectiva para experimentar a ambivalência como um elemento dado na constituição humana. A oportunidade de encarar a vida como um jogo: local de vitórias e derrotas, mas sem certeza de tudo, sem certeza das jogadas. Viver a vida como um jogo não é esperar pela vitória, mas é viver o prazer do próprio jogo, portanto, não é esperar por um final feliz, mas caminhar um trajeto prazeroso.

Referências

[1] ↑ BAZZANELLA, Sandro Luiz. O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman. Cadernos Zygmunt Bauman ISSN 2236-4099, v 2, n. 4 (2012), p. 59-82, Dez/2012.
[2] ↑ Modernidade Líquida, o que é. Colunas Tortas. Acessado em 27/03/2016.
[3] ↑ O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman… p.62.
[4] ↑ O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman… p.63.
[5] ↑ Poderio militar israelense “made in USA” esmaga palestinos. Revista Fórum. Acessado em 27/03/2016.
[6] ↑ O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman… p.64.
[7] ↑ O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman… p.65.
[8] ↑ O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman… p.66.
[9] ↑ O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman… p.67.
[10] ↑ O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman… p.69.
[11] ↑ O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman… p.71.
[12] ↑ O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman… p.72.
[13] ↑ BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e AmbivalênciaTradução Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999 Apud BAZZANELLA, Sandro Luiz. O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman. Cadernos Zygmunt Bauman ISSN 2236-4099, v 2, n. 4 (2012), p. 59-82, Dez/2012.
[14] ↑ O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman… p.75.
[15] ↑ BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e AmbivalênciaTradução Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999 Apud BAZZANELLA, Sandro Luiz. O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman, p79.

Outras questões pertinentes.






terça-feira, 31 de outubro de 2017

TRANSFORMAÇÃO






No Mundo. RICARDO REIS

No mundo, só comigo, me deixaram
Os deuses que dispõem.
Não posso contra eles: o que deram
Aceito sem mais nada.
Assim, o trigo baixa ao vento, e, quando
O vento cessa, ergue-se.

Com a fluidez daquilo que jamais termina,

 Com a fluidez daquilo que jamais termina,
    Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente,
    Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.

    Charles Baudelaire

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Agente de fuerzas heteróclitas.

A Gregorovius, agente de fuerzas heteróclitas, le había interesado una nota de Morelli: "Internarse en una realidad o en un modo posible de la realidad, y sentir cómo aquello que en una primera instancia parecía el absurdo más desaforado, llega a valer, a articularse con otras formas absurdas o no, hasta que del tejido divergente (con relación al dibujo estereotipado de cada día) surge y se define un dibujo coherente que sólo por comparación temerosa con aquél parecerá insensato o delirante o incomprensible. Sin embargo, ¿no peco por exceso de confianza? Negarse a hacerpsicologías y osar al mismo tiempo poner a un lector –a un cierto lector, es verdad– en contacto con un mundo personal, con una vivencia y una meditación personales... Ese lector carecerá de todo puente, de toda ligazón intermedia, de toda articulación causal. Las cosas en bruto: conductas, resultantes, rupturas, catástrofes, irrisiones.

RAYUELA(Júlio Cortázar)

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sexta-feira, 27 de outubro de 2017

LOTERIA ESPORTIVA


"O CONCEITO DE RACIONALIDADE EM HABERMAS

Segundo Lyotard, há uma variedade de jogos de linguagem, uma heterogeneidade de elementos, cada um veiculando consigo "valências pragmáticas sui generis". Metarrelatos como a "dialética do espírito, a hermenêutica do sentido, a emancipação do sujeito racional ou trabalhador, o desenvolvimento da riqueza" não oferecem mais condições para se poder dizer sobre a legitimidade da variedade dos jogos de linguagem ou sobre a heterogeneidade de suas valências.
A legitimidade, tanto em matéria de justiça social como dos critérios de verdade, é a da otimização das performances do sistema, através de seus critérios de eficácia. Com a falência do que Lyotard chama de metarrelatos, a legitimidade passa a constituir um problema, pois não pode mais ser obtida pelos critérios de operatividade, na medida em que estes não permitem distinguir o verdadeiro do falso. Assim como a legitimidade também não pode mais ser obtida através da discussão, pois violentaria a heterogeneidade dos jogos de linguagem, a invenção se produz sempre no interior não do consenso mas do "dissenso" (16, p. 8).

Para Lyotard, o conhecimento muda de status ao mesmo tempo em que as sociedades entram na era "pós-industrial" e as culturas na era "pós-moderna". Esta ultrapassagem começou no final da década de 50, q uando a Europa terminava a sua reconstrução. Depois de passados  quarenta anos, as ciências e as tecnologias ditas de ponta trouxeram para a linguagem "a fonologia e as teorias lingüfsticas", "os problemas da comunicação e da cibernética", "as álgebras modernas e a informática", "os computadores e suas linguagens", "os problemas de tradução das linguagens", "a busca de compatibil idades entre linguagens-máquinas", "a telemática", "a paradoxologia", etc (1 6, p. 11-1 2). Essas novas tecnologias acarretaram também conseqüências ao nível da investigação e da transmissão do conhecimento. No que diz respeito a sua transmissão, o conhecimento só pode ser transmitido em termos de quantidade de informações.


A orientação das pesquisas, por seu lado, subordina-se à condição de tradutibil idade dos resultados em linguagem das máquinas. Tanto os produtores quanto os utilizadores do saber devem encontrar os meios de traduzir estas linguagens. Com a crescente hegemonia da informática, uma certa lógica se impõe sobre o conjunto de prescrições e também sobre os enunciados aceitos como conhecimento. O velho princfpio de que o saber é indissociável e indispensável à formação (Bildung) do esprrito, e mesmo da pessoa, "deixa de ter sentido" (16, p.1 4). O saber será produzido para ser vendido, para ser valorizado em uma nova produção, deixando de ser portanto um fim em si mesmo. Com a informatização da sociedade o status do conhecimento muda: ele deixa de ser orientado com a finalidade de ser "original", "verdadeiro", passando a ser orientado por critérios de eficácia, de "capacidade discriminante".


Em um caprtulo do seu livro, Lyotard retoma a teoria dos jogos de linguagem de Wittgenstein.


Sobre os sujeitos dos jogos de linguagem observa que nestes as regras não são legítimas em si mesmas, mas resultantes de um contrato explícito. Uma modificação mínima de uma regra modifica a natureza do jogo. Todo enunciado deve ser considerado como um "lance". I sto significa que todo ato de fala é um ato de combate, no sentido do jogo, e que os atos de linguagem revelam uma "agonrstica gerar'.


O sentido do lance se relaciona com o prazer da invenção que "é o que permite a evolução da linguagem" (16, p. 26). Em um contexto de decomposição dos grandes relatos em conseqüência da dissolução da lei social e com a passagem das coletividades sociais ao estado de uma massa de átomos individuais lançados no interior de um movimento browniano, os jogos de linguagem representariam o minimum de relação exigida para a reprodutibi lidade social. Esta atomização do social em flexrveis redes de jogos de linguagem pode parecer bem distante de uma realidade moderna permanentemente paralisada, bloqueada por aparatos burocráticos. No uso cotidiano, em uma discussão, no entanto, elas podem encerrar uma maior flexibilidade dos enunciados. A burocratização seria o limite desta tendência (16, p. 26). Cabe observar que a utilização feita por Lyotard do conceito de jogos de linguagem do último Wittgenstein não tem como meta a explicação do funcionamento das relações de comunicação intersubjetivas no interior da própria socialidade, ao contrário, Lyotard coloca-o fora dos contextos institutionais, distante do "grande mundo", e sem qualquer possibil idade ou final idade de mudar as regras deste. No limite, a· aplicação do ' conceito de jogos de linguagem restringe-se ao âmbito do ócio,como uma prazerosa experiência estetizante de um diálogo engenhoso. Como observa A.Honneth, Lyotard "projeta Nietzsche em Wittgenstein" (13, p. 895) .


O g rande relato, seja ele especulativo ou emancipador, perdeu sua credibilidade. O declínio dos relatos é resultado do avanço das técnicas e das tecnologias que ocorreu a partir da Segunda  G uerra Mundial e que acentuou a importância dos meios em relação aos fins. Este processo é simultâneo à grande transformação do capitalismo liberal avançado durante os anos 1 930 a 1 960. Esta renovação, segundo Lyotard, "eliminou a alternativa comunista e valorizou odesfrute individual e dos serviços" (16, p. 68) .


Lyotard toma o movimento cultural que vai da diagnose niilista de N ietzsche até o pessimismoestético e literário das vanguardas em Viena na virada do século como a "pré-história da pós-modernidade". N ietzsche mostrou que o niil ismo europeu resultou da auto-aplicação das exigências científicas de verdade a estas próprias exigências. Este processo de deslegitimação Wittgenstein entendeu à sua maneira. A ciência faz seu próprio jogo de linguagem. E la não pode legitimar outros jogos de linguagem. Disto resulta uma conclusão pessimista: "ninguém pode falar todas as línguas, não há metal inguagem universal". Foi este pess imisl]1o que nutriu a geração de intelectuais vienenses na virada do século: artistas como Musil, Kraus, Hofmannsthal , Loos, Schõenberg, Broch, e também fil6sofos como Mach e Wittgenstein ( Nota E; 1 6, p. 68).


IV


A crítica de Lyotard aos relatos de emancipação, e principalmente ao modelo de consenso,é dirigida contra a tradição do idealismo alemão, principalmente à ética da "comunidade da comunicação" defendida por K. O. Apel e J. Habermas. Lyotard expressa seu ceticismo em rela­ ção à possibilidade de se fundar racionalmente uma ética em uma época de crise de legitimidade dos relatos de emancipação decorrente do desenvolvimento das ciências, pois para ele isto afeta diretamente a idéia da validade intersubjetiva. Mas é possível se contentar com normas morais reguladoras da convivência humana · cuja val idade se restrinja aos pequenos grupos, aos acordos meramente locais, remetendo a relação entre os grupos à destrutiva luta darwinista pela sobrevivência? A situação é paradoxal: nunca a questão de se construir uma éticaracional se mostrou tão sem esperanças e ao mesmo tempo tão imprescindível, dado que a possibi lidade de extermínio catastrófico da espécie não é mais uma mera mitologia terrificante, como em outros tempos, mas uma possibilidade concreta. Esta possibilidade afeta não apenas um limitado grupo de pessoas, mas o "gênero humano" como um todo. No entanto, predomina, no horizonte da modernidade tardia, a idéia generalizada e amplamente difundida - seja através dos meios de comunicação de massa ou nas discussões restritas dos círculos intelectuais - de que são remotas tanto as possibil idades de uma objetividade científica no âmbito das ciências lógico-matemáticas e das ciências empírico-analíticas quanto as possibilidades de uma validade intersubjetiva dos argumentos. E isto porque os juízos de valor não podem ser deduzidos nem dos formalismos das conclusões lógico-matemáticas nem das conclusões indutivas com base em fatos. A idéia da objetividade científica difere da pretensão de val idade das normas e dos juízos de valor no âmbito da subjetividade não vinculante. Walter Benjamin, no aforismo "Posto de gasolina", expressou de modo profético, já na década de vinte, esta situação paradoxal hoje imperante: "A construção da vida, no momento, está muito mais no poder dos fatos que de convicções. E, aliás, de fatos tais, como quase nunca e em parte nenhuma se tornaram fundamento de convicções" (2, p. 5).


O conceito de "dialética" como decurso histórico objetivamente necessário está em contradição tanto com a idéia moderna da objetividade científica como também com a da livre decisão moral da consciência. Este conceito de realidade "concreta", como realidade em processo, comum a Hegel, Marx e ao tardio Whitehead, segundo Apel, "não está de fato em condições de 'eliminar' a distinção, relevante tánto na prática como na ética, entre o que é agora e o que deve ser" ( 1 , p. 21 1 ). Enquanto filosofia dialética o marxismo não aceita a separação entre ser e dever-ser, entre fatos cognoscíveis cientificamente e normas fixadas subjetivamente. A idéia de que a humanidade só se coloca tarefas para as quais pode encontrar solução e que ela tem diante de si . a tarefa de "superar" a sua pré-história natural, isto é, o particularismo atomizante dos interesses de grupos e classes, representa um aspecto positivo do antagonismo entre o que é e o que deve ser. Ser e dever-ser, fatos do conhecimento e normas subjetivas, no que diz respeito a sua função ideológica, na verdade não se contradizem, mas se complementam.


Segundo Apel, há uma conexão, uma "complementaridade oficial", entre "misticismo" e "subjetivismo existencial", entre "solipsismo transcendental" (Wittgenstein) e "comunicação indireta" (Kierkegaard) ou "iluminação da existência" (Jaspers). Para Apel, "a complementaridade entre objetivismo avalorativo das ciências, de um lado, e subjetivismo existencial dos atos de fé religiosos e das decisões éticas, de outro, são a moderna expressão filosófico-ideológica da separação liberal entre âmbito público e âmbito privado da vida" (1 , p. 214). Isto tem como conseqüência geral que em praticamente todos os âmbitos da vida pública os fundamentos morais da práxis são substituídos por argumentos pragmáticos que podem ser fornecidos pelos especialistas com base em regras científico-tecnológic. as objetiváveis. Apel lembra que Weber descreveu a racionalidade da esfera pública, do comércio e da administração burocrática do estado como um processo indissoCiável. E sta análise e este processo se ampliaram e se generalizaram principalmente com o auxnio da cibernética e com a teoria funcionalista da sociedade como sistema. Nos dias atuais o "pragmatismo instrumentalista" se tornou parte componente da filosofia analítica e do pensamento publicamente ativo. Isto se efetivou não sem acarretar problemas teóricos insolúveis, como, por exemplo, os das dificuldades metodológicas da "ordinary language philosophy" em geral. Já no último Willgenstein estes aparecem fundados no fato de ele não refletir sobre a relação "comunicativo-reflexiva" entre os "jogos de linguagem" e as "formas de vida" por ele descritos, que permanecem entre uma "análise transcendental"e uma "análise quase behaviorista" (1 , p. 226) .


O que escapa à análise de Lyotard é que as flexíveis redes dos jogos de linguagem pluraissão inimagináveis sem pressupor o que Apel chama de uma comunidade da comunicação de indivíduos capazes de ilimitada comunicação e de consensos intersubjetivos. Mesmo o pensador sol itário só pode explicar e controlar a sua argumentação enquanto está em condições, no"colóquio da alma consigo mesma" (Platão) , de interiorizar o diálogo de .uma comunidade da argumentação racional. Isto significa que não se pode seguir uma regra sozinho. Mesmo no âmbito privado, a linguagem, para ser reconhecida como válida, é em princípio pública. Compreender a si mesmo e ao outro significa conceber as condições de possibi lidade e de validade da compreensão do sentido. Para Apel, a afirmação de Willgenstein, contida nas Investigações filosóficas, de que "não é possível que um só homem tenha seguido uma regra uma só vez", parte do pressuposto do jogo lingüístico como condição dos critérios de prova e portanto da validade das "regras" e da "observância de regras" ( 1 , p. 238). Em uma observação marginal, Apel destaca que Willgenstein nada tem a ver com O behaviorismo, porque este substitui a compreensão da ação, que decorre da comunicação, pela observação meramente exterior do comportamento (1 , p. 238-239).


O sentido da comunidade da comunicação tem como pressuposto o reconhecimento de todos os membros com iguais direitos de discussão. Deste ponto de vista, na dimensão pragmá­ tica do discurso, a "competência comunicativa" (Habermas) é primária em relação à "competência gramatical" (Chomsky) ( 1 , p. 239) . A tese desenvolvida por Habermas da possibil idade de se poder, em princípio, verbalizar todas as ações e todos os gestos expressivos é sugerida pela descoberta de Austin da "manifestação executiva" e da sua generalização e radicalização na história dos "atos lingüísticos" de J. R. Searle ( 1 , p. 239) . Essa comunidade da comunica­ção se apresenta portanto como possibil idade de comunicação de sentido e de justificaçãodialógica para as operações monológicas das ciências.


A comunidade da comunicação como a priori, conforme os argumentos de Apel, não significaria um retroceder à concepção idealista da "dialética do espírito". Esta comunidade não tem como pressuposto o a priori da "consciência". Ela significa, segundo Apel, "uma comunidade real da comunicação, e quem argumenta se torna ele mesmo membro através do processo de socialização e, em segundo lugar, uma comunidade ideal da comunicação que esteja em condições de em princípio compreender adequadamente os sentidos dos seus argumentos e de julgar definitivamente a sua verdade. O elemento singular e dialético desta situação está portanto em que ele de certo modo pressupõe a comunidade ideal na comunidade real, isto é, como possibil idade real da sociedade real, mesmo que ele saiba que na maior parte dos casos "a comunidade real... está longe de assemelhar-se à comunidade ideal da comunicação" (1 , p.263). Uma contradição no sentido não metafórico que, como tal, deve "ser suportada" (Hegel), e que só pode encontrar uma verdadeira "superação" através da realização da comunidadeideal da comunicação no interior da comunidade real da comunicação. Esta exigência implica que toda argumentação possa ser derivada de dois princípios regulativos fundamentais para a estratégia moral das ações de cada homem; todo agir deve garantir a sobrevivência do gênero humano como sobrevivência da comunidade real da comunicação e ter como questão a realização da comunidade ideal no interior da comunidade real. 


Carlos Eduardo Jordão MACHADO"

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Medo Líquido


Medo Líquido - Zygmunt Bauman uma resenha

Para Bauman, há três formas do medo afligir as pessoas em nossa sociedade líquida: 1) pelo medo de não conseguir garantir o futuro, de não conseguir trabalhar ou ter qualquer tipo de sustento, 2) pelo medo de não conseguir se fixar na estrutura social, que significa, basicamente, o medo de perder a posição que se ocupa, de cair para posições vulneráveis e 3) o medo em torno da integridade física.
Bauman também toma o conceito de “medo derivado”. Ao contrário do medo primário, o medo derivado (que é secundário) é um medo inculcado socialmente. O medo primário se trata do medo da morte na sua forma mais pura: é o medo de levar um tiro quando se está na guerra; já o medo secundário é aquele que nos obriga a seguir pelo caminho mais longo para não passarmos pelo meio da favela.
Este conceito, me parece, toma emprestado as características do conceito de habitus, de Bourdieu, pois o medo secundário é uma propulsão, ele trabalha enquanto disposição socialmente incorporada. Para este medo, há práticas socialmente aceitas e incorporadas que representam sua fuga.
Para onde estas análises levam? Primeiramente para a constatação de que trocamos segurança por proteção. Existe uma diferença (não muito tratada neste livro, mas bem explicada em “Comunidade”). Basicamente, segurança é aquilo que nos constitui. Proteção são equipamentos. Segurança = interior, proteção = exterior. Ser inseguro (como explicita a análise de Bauman) é ser um sujeito constituído de tal forma que a incerteza, a liquidez das relações e o medo de tudo, são características a priori. A priori histórico, claro.
Se trata de dizer que o inseguro é aquele que fica olhando o celular do parceiro para saber se ele ou ela está traindo. Já a proteção pode ser vista no número de câmeras instaladas em estabelecimento/condomínios/instituições, coletes à prova de balas, armas que são compradas para se usar “contra bandidos”, senhas para impedir que qualquer um veja a tela de seu celular e etc.
A cidade
Este princípio da proteção como solução para a insegurança também é vista fora dos equipamentos para a gurda da integridade física: ao citar a cidade como um local de1 encontro, como um espaço mixofílico e mixofóbico, ele trata de estabelecer alguns paralelos entre a arquitetura urbana e a insegurança pós-moderna.
Bauman, medo líquido
O Grito
A cidade é o lugar do encontro, da mistura, do novo, da efervescência, é o lugar onde tudo e todos se encontram mesmo sem querer se encontrar, é o lugar onde estar com quem não se conhece é um pressuposto, é um termo aceito tacitamente e, por isso, ela é um espaço mixofílico (que promove a mistura, que faz da mistura um gosto aceitável e aprovável). No entanto, a sujeira precisa ser limpa. É na cidade onde pode-se encontrar os resultados da exclusão: os mendigos, as favelas e seus moradores, todos estes estranhos são seres que provocam o desprezo e a repulsa dos cidadão ditos normais. A mixofobia (a repulsa pelo estranho) é vista materialmente de forma peculiar.
Ao invés de utilizar o exemplo de Bauman, prefiro me referir à Avenida Paulista. A Paulista é a principal avenida paulista, é o centro financeiro da cidade e, como é de se esperar, é um antro da exclusão, do comportamento blasé e da normatização hegemônica. Em frente aos grandes prédios, além dos vários seguranças que efetivamente estão lá para espantar os excluídos, há a presença de longas barras de ferro cheias de pontas que ficam acopladas em frente as vitrines. Qual o motivo? Mendigo não dormir. Isto é uma expressão clara da mixofobia.
A mídia
Segundo Bauman, a sociedade é um dispositivo que visa tornar tolerável a experiência da vida tendo a certeza da morte. Para ele, há duas formas de se lidar com a morte: 1) a desconstruindo, ou seja, detalhando completamente suas causas de maneira que, no fim, parece que ela poderia ser evitada e 2) a banalizando, que quer dizer, mostrá-la como algo do cotidiano. O programa do Datena é o exemplo perfeito de ambos. Brasil Urgente tem a enorme vantagem de falar, basicamente, só de desgraça. Os acidentes de carro são descritos minunciosamente e a culpa é sempre de um motorista bêbado ou distraído. A morte não é um fato, é um acidente, de acordo com o discurso do programa. Além disso, a quantidade de mortes ali já deixa claro a banalização do acontecimento.
A morte não é só, digamos, morrer. Bauman coloca graus de morte, mas enquanto relação para quem sente: a morte em primeiro grau é, de fato, a morte, é deixar de existir; já a morte em segundo grau (que seria a experiência primária de um sujeito vivo com a morte) seria a morte do outro, a morte de quem nos relacionávamos; enquanto a morte em terceiro grau é a quebra do relacionamento, a exclusão (e é a experiência secundária que se pode ter da morte).
O ponto alto deste capítulo é a relação da experiência secundária da morte como uma experiência banal e cotidiana (e que produz insegurança), já o exemplo (incrível) de Bauman são os reality show, como o Big Brother, em que os participantes tem como pressuposto a exclusão. Eles precisam quebrar os relacionamento em algum momento, pois só um saíra vencedor. O Big Brother, sendo um produto cultural, é também parte de nossa sociedade e nele é possível enxergar um pouco de sua lógica.
Medo líquido Bauman sociedade
Bauman
A liquidez moderna resulta em uma infinidade de experiências secundárias da morte, de exclusão e, portanto, na construção cotidiana e tijolo por tijolo de uma insegurança estrutural. Insegurança essa, que promove a criação e a utilização de técnicas e tecnologias para a proteção.
O papel da mídia também se mostra importantíssimo por ser aquilo que espalha o medo. O medo não é mais o que se escuta nos contos, nos mitos, nas reuniões de família, nas agremiações e etc e etc. Ela é vista cotidianamente pela televisão, pelos jornais, pela internet e etc e etc.
Bauman cita a Al-Qaeda. Antes do 11 de setembro, eram alguma coisa? E depois?
A responsabilidade
Uma grande sacada está na análise da responsabilidade humana por seus problemas. Bauman verifica que, a partir de Rousseau, a posição da humanidade em torno dos desastres naturais se modificou. Os desastres naturais, únicos que poderiam escapar da responsabilidade humana e serem imputados aos deuses, ao acaso e etc, acabam tendo o foco modificado. Rousseau diz que o desastre natural ocorrido em Lisboa (e que vitimou milhares), não pode ser tido como algo “que acontece”, mas sim como a falta de planejamento das pessoas que moravam nos locais em perigo. O desastre acontece, mas as pessoas podem evitá-lo.
O que ele quer dizer com isso? Ao traçar essa divisão entre o momento em que a responsabilidade não pode ser evitada, ele consegue argumentar que, em um sistema complexo e global, em uma rede tão interligada, não há como não ter responsabilidade sobre seus próprios atos e sobre os seus resultados macro. O micro é a engrenagem do macro. É impossível retirar o corpo da jogada.